Por que dicas de produtividade não funcionam com pessoas criativas
Para além do discurso barato da disciplina e da culpa

Faça um planejamento, liste as suas tarefas, monte um Notion, prepare um cronograma, use gráficos Gantt, tenha um caderno físico. Bullet journal, GTD, Kanban.
Se você, como eu, lida com a luta para manter um mínimo de produtividade nesse mundo maluco que drena até a sua última gota de energia, você sabe que é como tentar encher um tanque furado, um copo por vez.
Não importa quantos planners você compre ou quantos aplicativos de produtividade instale, o ciclo se repete. No começo, a técnica até que funciona, mas aí vem aquele dia no qual você esquece de abrir o app ou deixa o caderno pra preencher no final do dia, ou pula só dessa vez… e nunca mais volta.
Então, quando você abandona o sistema, vem aquele impulso de apontar todos os dedos para si próprio.
É cruel, mas no final desse ciclo, sempre fica aquele gostinho amargo de que parece ter alguma coisa errada com você.
Mas a culpa não é sua.
Essa questão tem muito mais nuance do que o discurso da disciplina deixa transparecer.
Índice
Não é só encontrar o planner certo
O clichê existe porque, em algum momento, ele foi tão bom que todo mundo começou a usar.
Acho que podemos dizer que, se algo se difunde o suficiente para se tornar lugar comum, isso é uma boa coisa e diz muito sobre a qualidade daquela ideia em um determinado contexto.
No entanto, ideias não existem no vácuo. A cultura avança e, com ela, novos contextos são construídos. Então, naturalmente, essas ideias são colocadas à prova, refinadas — ou derrubadas de vez.
No caso dessas técnicas de produtividade, elas refletem uma visão de trabalho que hoje (graças aos Budas) é questionada. Muitas delas são criadas por autores que defendem uma visão de mundo em que se espera que cada pessoa seja capaz de administrar tudo: tempo, emoções, energia, metas. Que, no mínimo, esteja sempre pronta, sempre produtiva, sempre em alta performance. Esse ideal ainda paira no ar, mas ao menos, não sem oposição. Aos poucos, vamos percebendo que o lugar do trabalho nas nossas vidas não é de prioridade absoluta, indiscutível, e que ele compete com a necessidade de pausas, desvios, recomeços, de relações familiares, de amizade, de comunidade.
A maior parte dos conselhos de produtividade parte de uma lógica simples: se você organizar seu tempo, criar metas claras e repetir ações todos os dias, vai conseguir manter o foco, cumprir suas tarefas e atingir seus objetivos. De fato, existe esse perfil que, embora não sem oscilações, funciona assim. Basta um pouco mais de disciplina e um sistema de organização e as coisas andam mais ou menos bem.
Essa premissa chega até a ser desejável, se parar para pensar. É quase um conto de fadas — imaginar que os problemas que uma pessoa tem para sentir motivação para trabalhar, produzir, se resumam a ajustar o sistema, organizar as tarefas. Eu até queria que fosse assim.
Mas, como a vida gosta de demonstrar, nada é tão simples. Se você olhar o bastante, qualquer coisa vira uma ciência em si. Tudo é complexo. Negar isso só é útil pra quem quer vender uma solução milagrosa.
Não é incomum que pessoas criativas simplesmente funcionem de um jeito diferente — pode ser também que você tenha alguma neurodivergência ou outro fator envolvido.
É importante não perder de vista que tem mil questões — médicas, psicológicas, sócioeconômicas — que estão além do que um Notion para organizar sua produtividade consegue resolver. Nós somos sistemas super difíceis de balancear. É praticamente impossível chegar a esse equilíbrio perfeito que vai nos levar à produtividade máxima. E, mesmo que fosse viável… pra quê mesmo?
Então, considerando o escopo do que um texto como o meu consegue atender, existem pessoas que só são diferentes mesmo. Elas não funcionam por disciplina. Fazer a mesma coisa todos os dias do mesmo jeito, no mesmo horário, é uma forma de matar essa pessoa por dentro.
Respeitando seu modo de funcionar
Então, sabendo que nem todo mundo consegue só sair virando a rotina de cabeça pra baixo do nada — e que não existe um único sistema que atende a todos — pode ser útil levantar algumas ideias para ir pensando em formas de implementar, na medida do possível, modificações que sejam mais adequadas a essa forma diferente de operar.
Você nunca vai atingir o estado de máquina perfeita (que ideia, né?). No entanto, é possível se organizar de uma forma que seja mais favorável ao pensamento flexível de uma pessoa criativa. Eu vou listar agora algumas estratégias que já experimentei e me deram bons resultados. Não pense que elas compõem um modelo definitivo, mas sim, que podem ser pedaços para você montar o Lego do seu sistema de produtividade, conforme sentir que se aplicam ou não a você.
Organização baseada em energia
O sentimento de aceitação é uma das partes mais fundamentais de construir um sistema que funcione. Contemplar o fato de que a sua energia oscila e definir ações aceitáveis possibilita que a sua avaliação da situação não ocorra baseada só na culpa do momento.
Então, uma forma realista de abordar é criar versões da sua rotina baseadas nos níveis de energia disponíveis. Digamos, alta, média e baixa. Está com a energia lá no alto? Pode abocanhar um pedaço maior. Se não, pega algo menor e good game.
É como encarar as tarefas como pedaços que se adaptam à energia que você tem disponível no momento. Em dias de ânimo, vai fundo. Trabalhe, produza. Naqueles dias mais lentos, talvez seja a hora de focar em só abrir os e-mails, tomar alguma coisa, ler ou sair pra espairecer.
O importante é que o seu sistema contemple suas oscilações com flexibilidade, mas sem esquecer de ter uma estrutura pra te trazer de volta.
A energia também pode se manifestar de formas diferentes ao longo do dia. Observe se você não é o tipo de pessoa que funciona mais à noite ou nas primeiras horas da manhã.
O cardápio de tarefas
Uma abordagem que às vezes funciona, é não tratar a lista de pendências como algo a se completar, mas sim, como um cardápio de tarefas.
Imagine que você vai começar seu dia e, ao invés de se desesperar pelo tanto de coisas que tem a fazer, você só escolhe algo dali e tenta começar. Se não funcionar, pode largar e pegar outra tarefa. Pode tanto ser uma pequena vitória que abre as portas para algo maior, como pode ser a sua única tarefa do dia.
Conte com as falhas
O sucesso com o sistema não é definitivo. Muito provavelmente, depois de um certo tempo, você vai se entediar dele. Vai esquecer, vai abandonando aos poucos e, de repente, a coisa sai dos trilhos. Isso é absolutamente normal.
Nossa mente se habitua a todo e qualquer estímulo e, quando ele deixa de ter brilho, o interesse desaparece. Desaparecendo o interesse, a mente fica sedenta por outra coisa pra colocar no lugar. Isso vale pra tudo, tudo mesmo. A diferença está mais no nível do quanto certos objetos são atraentes ou não.
No meu texto sobre o que aprendi escrevendo 100 newsletters, comentei sobre como lido com a consistência. Pra mim, não é muito fácil ser consistente. Eu perco prazos, fico desmotivado, travo.
Algo que me ajuda a desencanar é contar com as falhas e determinar prazos e objetivos flexíveis. Exemplo: ao invés de dizer que vou publicar meu texto toda semana, às 7hrs das terças, eu determino que se sair um texto na semana, está ótimo. Eu também tenho determinado que, se falhar, é aceitável se não passar de uma semana.
Menos culpa no processo, mas sem deixar de ter alguns limites estabelecidos. Pense em ter uma média razoável na maioria dos dias, não em todos os dias. Se falhar… bem, já fazia parte do plano. 🥸
Aproveite seus picos de interesse
Volta e meia comento como eu mantenho um planejamento, mas me permito mudar de ideia em cima da hora. Por experiência, eu sei que forçar vai me fazer perder muito mais tempo do que se eu optar por fazer logo outra coisa.
O que me permite manter meus textos atraentes e vivos é aceitar meus picos de interesse e confiar neles.
É óbvio que nem sempre é possível, mas quando essa oportunidade existe, não tenho o menor pudor em aproveitar. Deixo o texto que eu tinha planejado para outro momento e vou naquilo que está me chamando.
Determine um mínimo-ridículo (ou: abandone o controle de qualidade)
Minha energia oscila bastante. Tenho os dias bons e os péssimos. Isso influencia em todas as esferas da minha vida, mas aprendi a deixar fluir de forma mais ou menos natural — tomando o cuidado de também não descambar pra meses de paralisia.
Observo que, nas fases de baixa, muitas vezes, vale tentar abaixar os padrões ao invés de só desistir e tentar outro dia. Essa é uma estratégia que eu uso para saber se é um dia pra insistir um pouco ou se é o dia de ir dar uma volta.
Quando eu fiz meu voto de meditar todos os dias por um ano, não foram poucas as ocasiões em que eu sentei só um minuto. É melhor que falhar de vez e depois ficar me culpando.
Outro exemplo: se eu estiver em um dia ruim, mas ainda precisar ir treinar, meu objetivo se torna só pisar na academia. Muitas vezes, eu chego lá e digo que vou só tentar 10 minutos de esteira. Depois… “é, acho que dá pra fazer uns dois exercícios”. Não é raro que eu termine com o treino completo feito.
A lógica é assim: você tenta o mínimo ridículo (vestir a roupa), vê se brota a vontade de dar o próximo passo (“pow, nada a ver ficar em casa com a roupa da academia. Vou lá.”) e vai repetindo conforme se sente confortável (“agora que tô aqui, acho que consigo fazer só uma esteira”). De passinho em passinho dá pra se surpreender com o quanto você consegue avançar.
Ou, se você achar que não tem clima, só dê check na tarefa e vá ser feliz. Às vezes, a gente só precisa de uma vitória rápida no dia.
Cansou? Troque.
Como falei, é sempre um desafio me manter fazendo atividade física. Então, é comum que depois de algum tempo, eu comece a achar um tédio o ato de ir treinar. Com isso, eu aceitei que eu enjoo da modalidade que estou praticando no momento. Tudo começa muito interessante, mas chega o momento em que eu acho que já “entendi” e vou largando de mão aos poucos.
Sabendo disso, hoje fiz as pazes com a ideia de trocar de modalidade sempre que isso acontece. Eu vou pra academia praticar musculação, depois tenho uma fase de focar mais em andar de bicicleta ou correr. Em seguida, me matriculo no Crossfit, daí sinto falta de treinar calistenia. Quando o interesse muda, eu só vou. O importante é manter o corpo em movimento.
Vale pro processo artístico também. Focar em algo principal é ótimo, mas o importante mesmo é manter a mente criativa viva.
Nem sempre é sobre a tarefa em si. Tem vezes que é sobre o contexto.
Em muitos momentos, a tarefa é super chata e só isso já basta pra travar. Porém, nem sempre é necessário pular de tarefa para entrar no clima. É possível só trocar algo no contexto da atividade para a mente interpretar como algo novo.
Por exemplo, tem inúmeras situações em que eu escolho fazer um texto porque na hora que tive a ideia parecia super interessante, mas depois, eu perdi a fagulha. Sei que a ideia é boa, mas eu só não consigo me conectar com ela de novo. Nessas situações, já funcionou diversas vezes trocar de ambiente, colocar um estilo musical diferente para acompanhar, trocar a bebida (se sempre tomo café, naquele dia eu tomo chá), etc.
Eu trabalho em pelo menos uns quatro lugares diferentes da casa: no escritório, no sofá da sala, na mesa de jantar, no quarto e na varanda. Sair da casa e ir para algum outro canto também faz milagres.
Outras ideias: pendurar um quadro diferente, trocar os móveis de lugar, colocar um ruído de outro tipo de espaço no fone (por exemplo, se você sempre ouve chuva, pode tentar sons da floresta).
Não precisa ser nada grandioso. É surpreendente o quanto a mente se abre só com ajustes pequenos.
Encarando contradições
Tenho pensado bastante no quanto encarar a realidade é um ato complexo que demanda muita maturidade para se lidar com as contradições. É óbvio que vivemos em um sistema cruel, que nos demanda demais, ao ponto de nos adoecer.
Por outro lado, a gente precisa produzir, participar, trazer o sustento para nós, para nossa família. No fim do dia, são raríssimos aqueles que conseguem viver com alguma autonomia. Estamos sempre negociando, gerenciando, soltando e puxando. Afinal, romper com tudo isso envolve renúncias que nem todo mundo tem disposição para fazer.
Mas, num ponto de vista bem pessoal, vejo que vale tentar encontrar uma prática que faça sentido, escutar quando o corpo diz agora “não”, quando a cabeça diz “só mais um pouco” e quando o coração diz “vai”.
Estar afinado o suficiente para ouvir, para entender o que o momento pede é difícil, ainda mais nessa época de tantas distrações. Mas se tem algo que vale a pena desenvolver é esse olhar.
Mais uma vez, muito obrigado pela leitura! Conhece alguém que gostaria de ler também? Compartilhe esse texto. :)
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Desde já, obrigado por acreditar num mundo com mais criatividade. :)
Deve ter alguma câmera na minha casa, pois não é possível que conheça tanto o meu comportamento! rss Seu texto fez TODO O SENTIDO para mim. Muito obrigada pelo momento de respiro. Me senti emergindo da água após um profundo mergulho.
Cara, o que tu me faz perceber foi que a alata performance parece uma alienação da própria vida, essa alta performance a todo custo gera uma negligência das amizades, familias, de aproveitar a vida no momento. Porque a justificativa disso é um “sacrificio” agora pra um “ganho” depois, mas quem é CLT que nem eu, esse depois nunca chega e vamos deixando de viver a nossa vida e sonhando com a recompensa dessa vida lá na morte!
(Eu comecei a escrever algo que era nada a ver com isso, mas apaguei tudo e segui teu conselho e comentei o que meu coração pediu)