Conversar com amigos de longa data na idade adulta às vezes é melancólico. Falamos sobre quem não vemos há muito tempo, entes queridos que perdemos, as crises que já enfrentamos e aquelas que ainda estão nos consumindo. Divórcio, doenças, perdas e mais perdas.
Percebo que existe um certo esforço para dar uma notícia positiva, quase como se elas não tivessem o mesmo peso que as crises. Elas não vêm tão fácil.
Claro, existem aqueles eventos marcantes onde nos sentimos praticamente obrigados a dar pulos de alegria, de tão importantes. Ter filhos, comprar uma casa, formar na faculdade. Sabemos que esses eventos contam. Mas eles são raros em comparação com as pequenas irritações da vida, que tendem a ocupar bastante do nosso espaço mental diário.
O que é comer um bolo muito gostoso perto de levar uma fechada no trânsito? Qual chance tem um livro muito interessante perto do vazamento que começou no banheiro? Quem liga se você realizou uma tarefa que estava empilhada há meses quando só agora você percebeu que vai pagar multa por ter atrasado um boleto?
Sou exatamente a pessoa que descrevo. E, assim como sei que não tenho tanto o impulso de contar esses eventos coloridos do dia, vejo também como sou encontrado com a falta de interesse quando decido abrir sobre eles. É uma via fechada nas duas mãos.
O problema é que contamos nossa própria história pelo prisma das urgências, das irritações, das dores, das crises. E, assim, de inconveniente em inconveniente, vamos ficando cada vez menores, mais curvados. Até que um dia os músculos do rosto que erguem os cantos da boca simplesmente não sobem mais. A expressão de tristeza se torna um mal crônico.
De frase em frase, nossa história se transforma nessa trajetória rumo a um envelhecimento amargurado.
Treinamos tanto o olhar na direção dos obstáculos que vamos parando até de notar as alegrias e nossas próprias qualidades, nossa capacidade de pular cada uma dessas fogueiras.
Sei que estamos em uma rede de escritores. Na teoria, a escrita é ou deveria ser parte das nossas vidas. Ainda assim, tenho a impressão de que algumas vezes nos perdemos na pretensão de produzir obras de arte e de movimentar números gigantescos. E, com isso, esquecemos o quanto uma escrita despretensiosa e documental pode ser útil, importante até.
Esse foi o ano que mais documentei em toda minha vida. Anotei minha frequência de treinos, de práticas de meditação, de gastos e fiz notas diárias sobre meu humor e o que estava pensando.
Eu anoto coisas triviais, como outro dia que comprei um óculos novo porque queria me sentir bem com meu visual ou quando comprei televisão depois de ter me mudado de cidade. Ou até mesmo o alívio de ter guardado dinheiro na hora certa, antes de precisar trocar uma série de luminárias em casa. Quando a gente revisita, vem essa sensação de "nossa, teve isso e isso mesmo que foi tenso mas no final foi legal".
Ter a oportunidade de olhar o que passei sem as lentes da preocupação do momento me surpreendeu.
Eu, que sou tão dado a me perder em ansiedade e observar os problemas a quilômetros de distância, de repente, me pego conseguindo olhar tudo de uma forma muito mais positiva, simplesmente porque agora eu não tenho mais só as cores da memória como ela se apresenta nesse momento. Eu tenho números. Fatos.
Minhas medidas corporais melhoraram, meditei e pratiquei muito mais atividade física. Publiquei bem mais textos. De todos os desafios que enfrentei, saí bem melhor do outro lado. Ou, no mínimo, aliviado. Vivo!
Foi um ano de muita dificuldade, eu suei a camisa. E, se fosse depender apenas da memória, talvez eu estivesse lamentando agora. Mas na verdade… uau! Que feliz esse momento!
E o que isso tbm tem criado em mim é uma confiança porque a merda sempre tem. Sempre tem. Mas a gente vai se esquivando e dando um jeito como dá. Percebo que sofremos muito porque não reconhecemos isso e buscamos um voo de cruzeiro que nunca chega e nem nunca vai chegar.
A vida é assim mesmo. Ainda que fôssemos ricos, teríamos problemas de rico. No final das contas, é diferente mas é tudo igual. Todo mundo sofre. Mas também todo mundo sorri de vez em quando.
A vida se movimenta, respira, oscila. Os eventos passam pela janela um atrás do outro. Amizades começam e terminam. Relacionamentos amorosos, então, nem se fala. E vamos vivendo, vivendo, vivendo… até que não vivemos mais.
Aceitar isso tem me feito bem.
Mas sem aprender a contar minha história por uma lente que não a da insatisfação, talvez, eu nunca tivesse começado a ver assim.
Claro que, muitas vezes, esqueço de ver assim. Mas se você me lembrar, prometo te lembrar também.
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eu tenho um caderno bem estilo diário no qual anoto coisas do tipo se tá sol ou nublado, se tá muito quente, se tô angustiada com alguma coisa específica, se tô sendo feita de trouxa por alguém (geralmente, sim, mas aaaahh eu tô muito ciente disso!), mas também faço questão de anotar as coisas que são muito simples e gostosinhas: passear com os amigos, se comi bolo ou não (eu amo bolos e tortas kkkkk), se li alguma coisa legal que me fez pensar. às vezes eu paro e penso: meu deus um caderno com tanta informação altamente pessoal e comprometedora, acho que vou queimar depois. porém, depois que passa esse pânico, penso que vou gostar de revisitar as páginas e localizar os pontos em que fui muito feliz e os pontos que eu fui muito triste, mas que a vida na sua inevitabilidade de mudança, deu um jeito de seguir. isso é muito importante.
abração, luri!
Fala, Luri!
Do jeito que você conta aí dos seus registros, parece que você usa bullet journal, não sei. Eu uso!
Gostei do final: a gente vive, vive e vive... e depois não vive mais. Me lembrei de algo que os estoicos falavam e eu ainda não pratico. O tal do "memento mori".
Quando você fala dessa condição dos adultos lembrarem mais de amargura que de pequenas vitórias, algo que me soa caro é tentar manter a chama infantil dentro da gente -- esse prazer inocente da curiosidade e do deleite das pequenas coisas.
Viver no matérico, no ter que justificar que se é assim ou assado, deixa a gente doente, brother. Tô fora!
Como sempre, seus textos me dão ânimo novo.
Abração!