Pra que você quer tantos livros?
Umberto Eco e as complexidades do consumismo literário.
Estão abertas as inscrições para o meu primeiro workshop online, com o tema Autoedição: como editar seus próprios escritos. Para quem é apoiador do Puxadinho, tem um cupom de 20%, é só entrar em contato comigo. Vamos nos encontrar?
Todo domingo carrega uma energia inquietante. Apesar de ser institucionalizado como o dia da preguiça, o fato de ser um dos poucos dias de descanso que o trabalhador tem traz uma pressão que dificulta o ato de relaxar. A colcha da cama fica áspera, a boca resseca e as tarefas domésticas pendentes começam a invadir o espaço mental.
Levanto mas me recuso a usar meu dia arrumando a casa. Ao mesmo tempo, não consigo me sentir à vontade para ficar enquanto as canecas sujas, embalagens de encomendas e algumas roupas ainda penduradas sussurram um pedido de socorro.
Eu sou a primeira pessoa a defender menos consumo. Mas hoje, esse vai ser meu alívio. Minha decisão é ir até o shopping e circular pela livraria, sem hora para ir embora.
Não precisa ser muito esperto pra perceber que o mundo no qual vivemos nos orienta em direção a querer sempre mais. Quando a tensão no ombro aperta, é na direção do consumo que buscamos uma massagem. Mas, mesmo sabendo que é disso que eu preciso pra reduzir um pouco o peso de uma semana difícil, meu lado rebelde adolescente não sossega, apontando o dedo na minha cara, me acusando de ter me corrompido pelo sistema. No entanto, hoje, ele vai ser tratado como uma chamada de número desconhecido e ser sumariamente ignorado.
Não foi sempre assim. Esse adolescente já ganhou muitas batalhas. Ainda lembro de quando, anos atrás, comecei a ser invadido pelo conceito do minimalismo, que se tornou quase uma diretriz, uma postura pra vida.
Não duvido que o fato de eu ter na minha história uma série de mudanças de cidade, também criou uma marca que não me permite esquecer o quanto ter coisas pode ser um baita inconveniente — mesmo que, muitas vezes, ter menos não tenha sido exatamente uma escolha, mas uma limitação imposta pela ausência de recurso financeiro típica da falta de uma família rica pra chamar de minha.
Então, carrego comigo uma visão talvez um tanto romântica sobre possuir menos, como se apenas isso me transformasse em uma pessoa moralmente superior, mais sábia, flutuando sem me envolver no dilema de ter ou não ter. Quase como aquela figura estereotipada do monge que transcendeu as preocupações mundanas e agora vive em uma caverna, meditando em cima de uma pedra.
Não é à toa que minha versão de uma tarde de consumo aconteça em uma livraria. Dentro da reduzida lista de pertences que meus recursos financeiros me permitem ter em excesso, estão os livros. As pessoas compram livros por diversos motivos que nem sempre são exatamente para a leitura e eu não sou muito diferente. Dá para ter livros como objetos decorativos, como distração para espaços de recepção e até como troféus para exibir na estante da sala — como aponta o Seinfeld com aquela cara arrogante de quem sabe que tem razão. E não que tenha algo de errado nisso.
No caminho pro shopping, passo o tempo rolando a timeline e me deparo com uma citação do Umberto Eco. O momento é tão oportuno que só pode ser a providência divina validando minha decisão.
"É tolice pensar que você precisa ler todos os livros que compra, assim como é tolice criticar aqueles que compram mais livros do que jamais serão capazes de ler. Seria como dizer que você deve usar todos os talheres, copos, chaves de fenda ou brocas que comprou antes de adquirir novos.
Há coisas na vida das quais precisamos sempre ter um bom estoque, mesmo que usemos apenas uma pequena parte.
Se, por exemplo, considerarmos os livros como remédio, entenderemos que é bom ter muitos em casa, em vez de poucos: quando quiser se sentir melhor, você vai até o 'armário de remédios' e escolhe um livro. Não um aleatório, mas o livro certo para aquele momento. É por isso que você sempre deve ter uma escolha nutritiva!
Aqueles que compram apenas um livro, leem apenas aquele e depois se desfazem dele. Eles simplesmente aplicam a mentalidade de consumo aos livros, ou seja, os consideram um produto de consumo, uma mercadoria. Aqueles que amam livros sabem que um livro é qualquer coisa, menos uma mercadoria."
Acho que alguém poderia alegar que ele defende se apegar e nunca compartilhar o conhecimento. Mas, aqui, vou colocar a mão no fogo. Desfazer não é o mesmo que compartilhar, doar, emprestar. Um escritor como ele não utilizaria essa palavra de forma leviana.
Pensa comigo: nós nos desfazemos de algo que usamos e não serve mais. Nós compartilhamos aquilo que é bom e gostaríamos de ver beneficiando também outra pessoa. Jogar fora é desfazer. Doar ou emprestar é compartilhar. Ou seja, existe toda uma atitude, uma motivação, conectada à palavra “desfazer” que é totalmente diferente de “compartilhar”, ainda que o efeito básico seja o de ver o livro sumir da sua frente.
Adquirir e manter objetos apenas para tê-los é a definição mais comum de consumismo. Seria você enquanto uma boca monstruosa que devora tudo o que vê. Desejo pelo desejo.
Mas o Umberto Eco propõe outra coisa aqui. Ao invés de atribuir o consumo ao ato de adquirir, ele atribui ao ato de se desfazer, de descartar. O livro não poderia ser descartado porque não é feito para ser usado. A relação é diferente.
O livro não está numa instância de objeto supérfluo, mas sim, como uma espécie de mantimento, uma ferramenta, um remédio. Para o ele, o livro é uma necessidade, é essencial à sobrevivência.
Dá para entender bem de onde o discurso vem. Como escritor, não ter livros em sua estante cobrindo as paredes da casa seria como um curandeiro de fantasia medieval não ter ervas e cogumelos por todos os lados.
A verdade é que, ao mesmo tempo que eu carrego comigo uma tendência a me distanciar do consumo desenfreado, também me pego completamente mesmerizado pela imagem de um Gandalf soterrado por livros e documentos, estudando à luz de velas. Eu queria ser esse mago imerso em conhecimento.
Claro, você pode dizer que ninguém precisa ter tantos livros espalhados pela casa e que dá, perfeitamente, para ter todos esses livros dentro de um Kindle. Eu te responderia que você tem razão.
Mas a magia não é a mesma.
Existe uma palavra em alemão, Wunderkammer, que é traduzida como "sala das maravilhas" ou "gabinete de curiosidades". O termo tem sua origem nos tesouros reais, onde as joias da coroa e outros itens preciosos eram guardados em segurança. Mas, a partir do século XVI, com o Renascimento, não era mais suficiente apenas exibir a própria riqueza; cada objeto também deveria realçar as virtudes do regente. Assim, essas coleções passaram a trazer o mundo mais amplo para a corte, proporcionando uma compreensão do universo inteiro.
O Marc Maron é um comediante e podcaster que vale seu tempo. Uma vez, me deparei com um reels no qual ele conta que conheceu um garoto que não conhecia Led Zeppelin. Então, ele mostrou a banda e, no meio da conversa, a pessoa disse que o pai dela tinha uma banda nessa época, mas que o disco nunca tinha sido lançado. Cruzando informações, ele diz o nome da banda do pai — Wowii — e o Marc Maron solta: “eu tenho o disco do seu pai”. Graças ao Wunderkammer do Marc Maron, o filho conheceu não só o Led Zeppelin como também teve um contato único com a história do próprio pai. Aleatoriedades que só uma sala de maravilhas poderia proporcionar.
Uma biblioteca, por mais que seja apenas uma estante humilde no meio da sala, tem o apelo de ser um Wunderkammer. É uma porta para os mundos que você já visitou, uma ponte para boas conversas. Não tem coisa mais legal do que citar um livro, correr para a estante e entregar na mão de alguém que, a partir dali, vai ter esse terreno em comum com você.
Eu gosto das possibilidades que a presença física de um objeto abre. Quando eu era criança, uma parte muito importante do fascínio que a leitura e a escrita começaram a exercer sobre mim foi o fato de que tinha alguns livros espalhados pela casa. Tenho certeza que muitos daqueles livros jamais foram lidos, mas o fato deles estarem ali foi essencial. De qual outra forma uma criança poderia ter acesso a livros e tempo para lê-los se não compartilhando do mesmo espaço doméstico que eles?
Sim, há diversos inconvenientes em manter tantos livros. Eles ocupam espaço, acumulam poeira e transformam as mudanças num inferno. E eu entendo como é fácil ceder ao argumento de que sua presença em estado suspenso é inútil, mas de onde será que vem essa mentalidade? A vida não é útil, diria Ailton Krenak.
TikToks, Reels, Vídeos no Youtube, Podcasts, séries na Netflix, playlists no Spotify e até nossos textos no Substack, são feitos para serem consumidos e desaparecerem da nossa frente. Eles, sim, são usados, consumidos. Logo em seguida, somos servidos outra coisa, antes que possamos pensar no que fazer em seguida.
O tempo dos livros, talvez, seja mesmo diferente do tempo do consumo.
Penso nos anos entre o dia em que os livros na casa da minha mãe foram comprados e o dia em que eu os li.
Lembro de vários livros que parecem ter esperado por mim, como se tivessem ficado adormecidos na estante. Já aconteceu de tentar ler e abandonar após algumas páginas, por achar difícil ou nem gostar. Mas anos depois, era como se ele tivesse sido escrito para aquele momento específico da minha vida.
Lembro de momentos em que estava sentado, frente à estante e os olhos procuraram um canto específico. Uma lombada se destaca, eu abro e um trecho desperta em mim algo que se transforma em um texto ou um novo projeto.
Nesse sentido, o Umberto Eco tem um belo ponto. A disponibilidade de livros pode alimentar fagulhas e curar dores — como combustível, como remédio.
De fato, são maravilhas que podem descrever o universo, contar a sua história, impactar seus filhos.
Ou, talvez, eu só esteja mesmo justificando meu consumismo. ;)
Autoedição: como editar seus próprios escritos
Venho trabalhando há meses no meu primeiro workshop online, cujo tema é Autoedição: como editar seus próprios escritos. Decidi compartilhar o que aprendi em quase 15 anos de experiência nos dois lados do balcão — como autor e como editor. E, principalmente, enquanto escritor independente.
Vai cair num sábado, dia 24 de agosto, das 10hrs às 15hrs e vai ser dividido em duas sessões de duas horas, com intervalo de uma hora para o almoço.
Tem material sobre como nos distanciarmos do texto para ter objetividade, alguns aspectos de macro-edição (estrutura, ritmo, personagens, etc) e micro-edição (revisão linha a linha, repetição, clareza, transições, etc).
Reuni bastante informação que pode ser útil para produtores de conteúdo, mas em especial, para quem utiliza a escrita no dia-a-dia e não é, necessariamente, um redator ou escritor.
Então, se você é um acadêmico, um advogado ou um escritor independente (de ficção ou não) sem formação específica, o workshop pode ser bem útil.
Acredito que vai ser um dia super legal pra gente poder se encontrar e falar da escrita na minúcia, trocando experiências e ajudando uns aos outros.
Mais detalhes na página do Sympla, é só clicar aqui.
Caso você seja um apoiador do Puxadinho, tem um cupom de desconto de 20% especialmente para você. :)
Um abraço afetuoso,
Luri
Um dos arrependimentos que carrego foi ter me "desfeito" da minha biblioteca. Houve uma época em que me angustiava a visão de tantos livros parados, acumulando pó. Hoje sinto saudades, também gostaria muito que minha filha tivesse acesso a eles. Voltei a comprar alguns. Mas quero é agradecer por você ter trazido essa reflexão e o conceito de "compartilhar" em oposição a "desfazer".
separei um espaço em casa para os livros e decidi que todos devem caber ali. à medida que tenho mais do que o espaço é capaz de comportar, me obrigo a fazer escolhas de quais seguem comigo e quais ganharão novos donos. tem dado certo. ainda não tive que fazer nenhuma escolha de sofia.