Cada um lida com os traumas da vida como pode. Término de ciclos como casamentos ou demissão mexem muito com as pessoas que, em geral, escolhem no catálogo de mecanismos de enfrentamento aqueles que mais lhes apetecem. Alguns bebem, outros transam tanto quanto humanamente possível, vão para o máximo de baladas ou choram as pitangas com amigos.
Dessa vez, eu optei por estudar compulsivamente.
Todo mundo sabe o quanto venho indignado com a lógica dos algoritmos, a obrigatoriedade de produzir num ritmo super acelerado, de forma superficial, focando no entretenimento barato, na recompensa imediata e no estímulo a um ritmo de consumo nada saudável — mals aí rezar a cartilha toda de uma vez.
Por isso, depois de um período inicial de pura perda de tempo e desorientação, onde eu confesso que me acabei rolando timelines por horas seguidas, comecei a sentir a necessidade de focar.
De repente, eu me vi tentando aprender um novo idioma, praticando uma nova atividade física bem mais intensa e aprofundando meus estudos sobre meditação.
Todas essas atividades demandam habilidades que podem ser aprimoradas rumo ao infinito e compartilham certas características: as recompensas demoram muito e são absurdamente difíceis de realizar bem.
Mas, curiosamente, eu não me peguei frustrado diante dos obstáculos e desafios que se apresentaram (como é de costume). Pelo contrário, encontrei uma posição de mente totalmente nova pra mim: uma enorme alegria justamente na dificuldade, nos tropeços, nos ajustes mentais e físicos que fui precisando fazer.
Por algum motivo misterioso, aquele esforço era divertido, estimulante. Comecei a ver sentido em forçar alguns limites, descobrir do que ainda sou capaz.
E, embora o processo em si tenha tomado bastante energia e tempo, a coisa não parecia um trabalho, como das vezes que tentei aprender outros idiomas ou começar um esporte.
Falando assim, pode até não parecer, mas esforço diligente é algo que costumava ser muito difícil pra mim. Normalmente, eu alimentava interesses muito intensos por curtos períodos de tempo. Quando aquele objeto deixava de ter o brilho da novidade, imediatamente eu partia pra próxima coisa.
Claro que isso sempre me afastou dos meus objetivos e metas, por mais que intelectualmente eu soubesse da importância. Depois de um certo ponto, manter a disciplina se tornava apenas enfiar uma agulha na ferida. Obviamente, fica insustentável realizar qualquer coisa desse jeito.
Minha experiência mais recente com o voto de meditar todos os dias por um ano, de alguma forma, sobrescreveu esse condicionamento. Houve um momento em que era muito difícil continuar, era forçado. No entanto, quando consegui cumprir com a meta, a felicidade que eu tive e os benefícios que percebi foram muito mais potentes do que qualquer coisa que eu tenha experimentado na vida. Gerou uma marca.
Além disso, quando comecei a ter esse entendimento empírico dos resultados de um esforço prolongado em algo difícil de atingir, comecei a ter atração por esse tipo de desafio. E, não só isso, como comecei a notar de forma muito mais potente os danos de certos hábitos vazios (como o scroll eterno da morte).
Isso continuou ressoando durante o ano passado. Quando terminei meu álbum e mais alguns mini projetos que me consumiram precioso tempo e recursos, a experiência novamente foi de satisfação, prazer, felicidade, enfim… energia.
Então, anota isso: é possível se alegrar no esforço e dar um novo significado à palavra.
Eu venho muito conectado com a Venerável Robina, uma monja budista australiana que possui a fala mais afiada que eu já vi na vida. O discurso é quase sobrehumano de tão cortante e preciso.
Assistindo aos seus vídeos, me deparei com esse abaixo, onde ela introduz uma das 6 perfeições (ou 6 paramitas), que ela chama de joyful effort ou enthusiastic perseverance— e eu vi traduzido pro português como “esforço entusiástico”, termo que vou usar daqui pra frente.
Embora não estejamos falando de darma, especificamente, acho que essa ideia se conecta com a sensação que venho tentando descrever.
Link Youtube | Nesse vídeo (em inglês), mais ou menos por 1h:28min do vídeo, ela começa a falar do tema.
Segundo a Venerável Robina, esforço entusiástico é o contrário da preguiça. Ela prossegue e descreve, basicamente, três formas de preguiça: a má vontade ("não me incomode com isso”), o autoengano de priorizar atividades vazias ou mundanas (“não tenho tempo”) e o pessimismo (“não consigo, não é possível”) .
Nem é necessário discorrer muito sobre isso porque essas justificativas todas nós conhecemos bem, é o discurso que usamos pra quase tudo que não traga recompensas imediatas para nós mesmos.
Já o Lama Padma Samten, mestre brasileiro fundador do CEBB, define o esforço entusiástico como energia constante. É quando as circunstâncias não nos afetam e somos capazes de nos manter caminhando, rápido ou devagar, conforme é possível. É essa energia constante, sem perturbações, que é a base da concentração e da sabedoria.
Outro grande professor é o Tsem Rinpoche. Ele fala sobre a felicidade em realizar ações virtuosas e traz um detalhamento muito interessante pra esse tópico, com três tipos de esforço entusiástico, análogos às formas de preguiça que a Venerável Robina cita.
Ou seja, se a base da preguiça é o autointeresse e a incapacidade de fazer algo que não seja benéfico a si mesmo, o esforço entusiástico tem por base a motivação de gerar benefícios aos outros.
Os 3 tipos de esforço entusiástico são:
O esforço como uma armadura: o esforço de construir a determinação de agir até ser bem sucedido em uma atividade virtuosa ou benéfica, não importa as condições e dificuldades que se apresentem.
O esforço de reunir virtudes: aplicar a perseverança e priorizar atividades que tragam benefícios, especialmente no desenvolvimento das habilidades que se tornam causa de ações benéficas.
O esforço de beneficiar os seres: é um otimismo, uma disponibilidade para continuar agindo em benefício dos seres de forma consistente.
Então, voltando ao tópico, a experiência de diligentemente passar por desafios complexos pode parecer absurda se pensamos do ponto de vista do conforto, de buscar o máximo de facilidades e de não sermos incomodados.
Queremos estar confortáveis, somos viciados na nossa zona de conforto. Queremos a temperatura ideal, a comida perfeita, entretenimento infinito. Ajustar o mundo físico inteiro aos nossos caprichos.
Mas se olhamos do ponto de vista de como pode ser estimulante ver certas qualidades se desenvolvendo e como elas podem impactar positivamente a nossa vida e a de todos ao nosso redor, aquilo de repente passa a ser algo que gera uma alegria.
Construir a capacidade pra diligência pode ser útil como uma ferramenta que nos torna aptos a impactar a vida de cada vez mais mais pessoas.
Ainda no meu exemplo bobo de aprender um novo idioma, essa habilidade abre um universo de novas possibilidades, novas conexões mentais, novas pessoas a quem posso conhecer e acessar. Expande meu mundo. Então, cada progresso, grande ou pequeno, rápido ou demorado, é incrível.
É como começar a tocar guitarra tudo de novo, coisa que da mesma forma, abre possibilidades de contato e conexão que eu nem imaginava. É horrível no começo, mas absurdamente recompensador no final das contas.
E, com o tempo, à medida que a gente vai se acostumando com a perseverança e a aplicar esforço de forma entusiasmada, dá até pra sonhar em começar a usar essa alegria como base pra tudo que a gente for fazendo na vida.
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Tenho a sorte de ter amigos incríveis e talentosos espalhados por aí. Calha que, nesse momento, vários estão realizando atividades variadas, intensas, lindas. São processos e jornadas que vale a pena conhecer, acompanhar e apoiar. Então, cá estou, divulgando duas pessoas que vale seguir de perto.
Carolina Dini: cozinha com amor e poesia
A Carolina Dini é uma amiga que sempre fez coisas incríveis, mas que de uns anos pra cá vem tocando projetos relacionados à cozinha, escrita, poesia e mil outras coisas. O Jornalzinho é parte desse ecossistema, é a newsletter na qual ela entrega textos super sensíveis e reflexões que eu, particularmente, adoro.
Mas, como bem sabemos, a internet é um terreno inóspito e é cada vez mais difícil entregar algo autêntico, que fuja das fórmulas prontas dos algoritmos de uma maneira que seja sustentável.
A Carol é uma dessas pessoas que contribuem para a internet que eu gosto de ver e, por isso, gostaria de 1) indicar para quem não conhece e 2) pedir que considere apoiar o trabalho dela com uma contribuição mensal.
Recomendo muito conhecer, revisitar (caso conheça) e, claro, apoiar com a quantia que puder.
Mateus Estrela: reconectando-se com o brincar na música
O Mateus Estrela é um amigo que já foi citado aqui outras vezes. Mixou e masterizou meu álbum e tem um trabalho autoral na música eletrônica muito legal com o STRR e o duo Realce.
MAUDE é o primeiro lançamento em que Mateus faz assinando com seu próprio nome. Dessa vez, liberou um EP com quatro faixas ambientadas no Lofi House e Garage, que procuram fazer uma interseção entre a música eletrônica ambiente, experimental e dançante.
A assinatura com o nome próprio e a foto que ilustra o EP refletem também a intenção das faixas: a experiência de se apropriar da musicalidade que está dentro e em volta de nós, brincar com instrumentos musicais e fazer experimentações da forma mais solta e autêntica possível, resgatando o prazer de se expressar através da música.
Vale seu play. Aproveita e segue também nas redes sociais.
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Um abraço apertado,
Luri
Dos textos mais úteis que li nesse 2023, Luri. Valeu!
Há pouco mais de 3 meses que terminei um relacionamento e entrei no limbo. Agora estou bem. Vou para o minimalismo, jogar muita tralha fora. E escrever mais.
Ah, sim, anotei a expressão: "esforço entusiástico". Acho que se conectará bem com as leituras sobre estoicismo que farei em breve.
Estou dando um passo à frente com relação a escrever e fazer yoga, duas coisas pelas quais sempre fui apaixonado mas que de um jeito meio torto ativava todos os gatilhos possíveis aqui em mim.
E é bacana perceber que 1-não sou o único neste processo e 2-o que estou sentindo tem embasamento em muita gente. Tipo, teu texto me lembrou de um sentimento que tive ontem sobre como é doloroso e estranhamente revigorante perceber que se aprendeu uma coisa nova (ou de que pelo menos se construiu uma camada nova naquele assunto).
Acho que os textos, vídeos e músicas certas aparecem, bastando ficar atento. Abraços cara!