Um pensamento para superar todas as crises
Sobre destinos que não somos capazes de sonhar.
1.
Eu venho pensando bastante sobre uma história que ouvi muito tempo atrás.
Um mestre budista chamado Chagdud Rinpoche, que era um refugiado do Tibet após a invasão chinesa, teve toda uma vida na Índia e, posteriormente, nos Estados Unidos. Nesse último país, entre outras coisas, criou a Chagdud Gonpa Foudation, para disseminar os ensinamentos do budismo tibetano.
Mais tarde, durante os anos 90, decidiu vir para o Brasil. Seus alunos estadunidenses não entenderam muito bem o movimento. Qual o motivo de ir para um país que, em teoria, não tinha nada?
Quando perguntado se ele estava vindo para o Brasil porque aqui seria, de alguma forma, melhor, ele disse:
“Eu não estou indo porque é melhor. Estou indo porque é pior”.
Antes que alguém se revolte, aqui era “pior” no sentido de que os ensinamentos eram pouco difundidos, não tinha muitos professores.
Essa é a mente de um bodisatva, um ser nascido com a motivação de beneficiar todos os seres. Ele não quer conforto, ele quer ajudar.
Então, ele veio pelos alunos da época, que tinham interesse forte em aprender sobre o budismo, algo que chamou sua atenção e impulsionou a mudança.
2.
Exemplos como o do Chagdud Rinpoche sempre me fazem questionar o que existe por trás das minhas decisões.
Sei que parece quase alienígena para quem foi ensinado a vida inteira que o objetivo máximo da existência é ter um desenvolvimento profissional brilhante e sentar em cima de tanto dinheiro quanto for capaz de acumular — é o meu caso.
Essa perspectiva fica absurdamente mesquinha, pequena, quando coloco em perspectiva a forma como um Chagdud caminhou pela vida, sempre interessado em gerar benefícios, em ajudar.
Aliás, é até uma redução, pensar que ele tinha “interesse em ajudar” porque não é bem isso que acontece. Uma vida como essa é descrita como sendo similar ao sol. O sol não consegue deixar de brilhar, nem que queira. Da mesma forma, não é que existisse algum movimento para ajudar. Ele simplesmente era assim. Ele gerava benefícios como nós respiramos.
É assim que eu acho que nós, humanos, somos — ou, no mínimo, como podemos ser.
Quando falam de “essência”, é isso que eu imagino.
3.
“Estamos sempre vivendo nossos últimos dias.”
Esse pensamento cruzou minha mente enquanto eu me via caminhando com o coração apertado.
Momentos de grandes transformações também geram oscilações severas na forma como nos sentimos. Tem momentos em que tudo aquilo parece um alívio, outros em que parece uma punição. Outros em que você foca em tudo que vai mudar pra melhor, outros em que se vê chorando tudo que vai perder.
Foi assim no último mês desde que percebi que, apesar de ter me agarrado com unhas e dentes e lutado para manter a vida que eu tinha até ser demitido, dessa vez o obstáculo era maior do que minha capacidade de lidar com a situação. A melhor alternativa era exatamente fazer o que eu não queria: me mudar.
Em meio a tudo isso, senti como se tivesse desperdiçado tempo, lutado à toa. “Se eu tivesse tomado essa decisão antes, eu estaria melhor agora”.
Ah, os “e se…”. Tão irresistíveis e tão inúteis.
Olhando a vizinhança, obras e mais obras. Os prédios brotam do chão. A paisagem já bem diferente de quando cheguei, seis anos antes. Lembrei do último mês, minha preocupação em manter uma rotina. Acordar, supermercado, fazer comida, escrever um pouco, sonhar o futuro, dormir.
Então, senti que de alguma maneira, tinha uma amostra grátis da morte acontecendo. Do nada, puxam seu tapete e todos os seus esforços perdem o sentido. Tem alguma coisa muito maior acontecendo, não resta outra alternativa a não ser abrir mão.
Deve ser assim, né? Ela vai acontecer. A derradeira puxada de tapete.
4.
Às vezes, parece que as únicas mudanças válidas são aquelas que planejamos. É como se o rótulo de “sucesso” só pudesse ser atribuído ao que foi pré-definido como objetivo. Se você não planejou antes, então, não conta.
Pelo menos é essa a impressão que me dá quando olho ao redor e vejo pessoas realizando suas transições com planilhas organizadas, orçamentos redondinhos, cronogramas detalhados. É quase como se existisse uma forma "certa" de mudar de vida.
Em contraste, as minhas mudanças sempre foram bruscas, quase como se eu tivesse sido vítima delas. Não planejei sair do meu emprego, não planejei me mudar. As coisas simplesmente aconteceram e eu me vi reagindo, me adaptando, correndo atrás.
Isso me incomodava. Vejo o discurso das pessoas por aí, com suas fórmulas prontas pra tudo e parece que eu deveria ter mais controle.
Mas, se olho de verdade, talvez seja exatamente o contrário.
As coisas que consigo conceber e planejar são, em geral, muito pequenas perto do que a vida pode proporcionar. Minha imaginação é limitada. Meus planos são limitados. E, se não fosse minha fixação pela forma que meus sonhos tomam, talvez eu pudesse me abrir muito mais às mudanças, ao imprevisível da vida.
Quem sabe, de repente, eu me tornasse capaz de reconhecer a riqueza das realidades que se apresentam, mesmo que sejam totalmente diferentes do que imaginei para mim.
Volto a pensar na vida do Chagdud Rinpoche. Ele, com certeza, não planejou ser um refugiado. Não planejou perder seu país, sua língua, seu monastério. Mas foi justamente através dessas mudanças não planejadas que ele pôde beneficiar pessoas ao redor do mundo de formas que ninguém teria imaginado se ele tivesse ficado no Tibet.
Às vezes, o que parece uma puxada de tapete pode ser, na verdade, um convite para conhecer destinos que ainda não somos capazes de sonhar.
Nota: Meu curso de conteúdo voltado ao Substack, o Ano 1, ainda está com o valor promocional até o dia 10 (decidi esticar um pouco mais). Se você gosta da abordagem do Puxadinho, criei um método baseado em como estruturo meu editorial, focando em construir comunidades com visão de longo prazo. Vamos começar seu projeto?
Vale a pena apoiar o Puxadinho?
Claro que vale. ;)
Além de garantir que eu tenha um teto, esteja bem alimentado e com a lombar inteira pra aguentar as horas escrevendo o que publico no Puxadinho, você vai receber textos exclusivos, participar do Destrava (nosso clube da escrita), fazer parte do Quintal (o grupo no Telegram) e ganhar acesso ao Repositório de Referências Infinitas. Ou seja, só coisa boa — para saber mais, é aqui.
Se quiser ajudar seu escritor favorito a continuar escrevendo, esse é o caminho:
Lendo teu texto, me lembrei de um trecho de "A boa sorte", da Rosa Monteiro. Um personagem se pega olhando pra algo que o faz feliz naquele momento, algo que é consequência de uma mudança não planejada, e sente um princípio de pânico pensando como era fácil que aquela coisa boa não tivesse acontecido.
(um tanto confusa minha explicação, espero que faça sentido ao ler 😅)
como tudo, acho que o segredo é encontrar um equilíbrio entre o planejamento e o improviso. o problema é que achar esse equilíbrio não é nada fácil (se é que de fato existe).