Isso encolhe seu mundo
A gente se protege, foge e se cerca dos brinquedos que nos atraem, mas a verdade é que isso nunca funcionou.
Essa semana, pesquisando sobre ilustração, encontrei um vídeo de 40 minutos, onde o autor explica sobre as técnicas do mangá em Dragon Ball. Eu assisti tudo e gostei, mas desde então, meu Youtube não mostra outra coisa.
Seja no Instagram, Twitter, Spotify, TikTok ou quando é a hora de conquistar a paixão da vez…. costuma ser meio assim em todo lugar, não só no digital.
Nossa sociedade é bastante baseada na crença de que mais do que nós gostamos vai nos manter engajados como cachorros esperando o biscoito.
A gente compra essa ideia. Eu, pelo menos, percebo que aposto todas as minhas fichas numa sucessão de pequenos prazeres, tentando construir um quarto aconchegante, decorado com tudo que tanto gosto. Vou me envolvendo cada vez mais, repetindo o que funcionou. Com o tempo, até evito ir em outras direções, fico viciado, desenvolvo um cacoete. Por que perder meu tempo procurando em outros lugares, se a felicidade está ali?
Tenho a impressão de que perseguir o que gosto é como entrar em um funil. Posso até começar a perceber cada vez mais detalhes sobre aquilo — o que não deixa de ser uma riqueza também — mas devagarinho vou me fechando a outras influências, sabores, vozes e cores. Com o tempo, meu mundo vai ficando cada vez mais estreito.
Também vejo que, se deixar, vou me construindo e definindo quem eu sou ao redor dos meus gostos. Carrego aquela lista de apegos e aversões como se fosse uma medalha de honra. Assino embaixo, faço um compromisso com a minha lista.
No entanto, quanto mais fixado eu fico aos meus gostos, mais planto a semente de sofrimentos futuros. Cada “gosto disso” vem acompanhado de um “não gosto daquilo” e cada vez que determino uma regra dessas, coloco na parede um aviso onde se lê “é assim que vou sofrer”.
Até faço um esforço, me protejo, fujo e me cerco dos brinquedos que me atraem, mas a verdade é que isso nunca funcionou. Muito pelo contrário.
O curioso é que, no fundo, eu sei que não adianta. Eu já vivi isso.
Pensa, por exemplo, num quadro que você amou quando viu na loja. Naquele momento, ele era tudo que você queria. Então, você compra e leva pra casa. Assim que você o pendura na parede, ele já perde um pedaço da magia. Ele fica ali até o ponto em que é só um bloco retangular na parede, quase uma mancha sem significado.
Cada vez que me deparo com aquilo que gosto, aquela coisa fica um pouquinho menos interessante. Na dúvida, é só esperar o tempo agir. Nada dura de verdade.
Essa realidade é apavorante. Tem gente que não quer nem ouvir. Mas é assim que é.
Penso bastante também nas coisas que não gosto. Aquelas da lista de objetos e experiências para evitar a todo custo. Sabe, tudo aquilo que dói?
Quando vem pouca gente na nossa festa de aniversário. Quando o aumento de salário nunca chega. Quando vem alguém e bate o carro no nosso. Quando a pessoa com quem vivemos nos trai. Quando ficamos doentes. Quando alguém que amamos morre.
Sobre isso, acho lindo o que diz a Pema Chödrön no livro “Acolher o indesejável”.
“Se nos fecharmos aos nossos sentimentos desagradáveis sem consciência ou curiosidade, se sempre os mascararmos ou tentarmos afugentar nossa vulnerabilidade, o resultado serão vícios variados. Dali sairá agressividade e violência contra os outros – todas as coisas feias. Por outro lado, se conseguirmos ir além da culpabilidade e outros escapes, e simplesmente sentirmos a qualidade nua e crua da nossa vulnerabilidade, entraremos num espaço onde o melhor de nós irá se revelar.
Todos nós temos um imenso potencial e contudo nos fechamos num mundo muito pequeno, amedrontado, baseado no desejo de evitar o desagradável, o doloroso, o inseguro, o imprevisível. Existem vastas e ilimitadas riquezas e maravilhas a serem vividas, se acostumarmos nosso sistema nervoso à realidade incerta, de final aberto, das coisas como elas são.” —Pema Chödrön
Às vezes eu penso que o ideal seria queimar a lista de tudo que gosto e não gosto. Abandonar completamente o sonho de que vou ser feliz buscando o que quero e fugindo do que não quero.
De alguma maneira, ser capaz de sentar e conversar com tudo que se apresente. Como se cada onda que viesse não me desse um caldo, me fazendo engolir areia, mas sim um convite ao mergulho, ao surfe, à brincadeira.
Sinto uma empolgação ao imaginar uma vida com uma postura de abertura radical, onde o que quer que eu encontre é bem-vindo, interessante e faz eu me sentir vivo.
Óbvio que não deve ser fácil. A gente pensa muito no resultado final, absoluto. “Aceitar tudo é impossível, que horror! Por que eu ia querer uma coisa dessas?” Não só concordo como estou com você. Nesse ponto onde estamos agora, é mesmo. Eu também estou longe de conseguir.
Mas penso que podemos levar isso como um ideal a ser alcançado, uma busca com um final a perder de vista.
E, por mais despropositado que possa parecer, ao menos esse é um lugar novo. Nossa posição atual nós conhecemos e sabemos bem o que acontece quando ficamos aqui.
Talvez, aos poucos, seja possível nos habituar a acolher o estranho, o desconhecido, o incômodo.
Eu não quero dizer gostar de tudo agora, bancar uma superhumanidade falsa e se mutilar.
Mas, sim, ir além desse gostar ou não gostar gradativamente, com curiosidade. Será que existe uma terceira possibilidade? Um caminho do meio?
Quero apostar que sim.
Uma playlist para uma manhã de louças limpas
Eu tinha chegado do treino e estava com aquela sensação de esgotamento e alegria que só a endorfina pode nos causar. Coloquei o Youtube na TV e, de repente, o algoritmo fez o seu trabalho.
Ótima vibe, perfeito pra uma manhã ensolarada e feliz. Coloquei as roupas pra lavar, lavei a louça e agora estou aqui, recomendando pra você. Ouve aí.
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Isso de entrar num funil me lembrou muito o livro escassez. Fiquei pensando se é uma questão de foco ou de escassez (nossa atenção é limitada como a memória de um computador), se a gente não entra no funil pode ficar vagando por toda imensidão que tem fora do funil e se perder, se desfragmentar...sei lá...tem muitos funis e muitas barras de rolagem infinita no mundo
eita, Luri!