Fazendo o mínimo pelo que me importa
Quando falta a vontade, existe algum jeito de continuar?
Lembro quando eu morava em São Paulo, comecei a ir para o trabalho de bicicleta, que ficava em Perdizes, perto da PUC. Quem mora por ali sabe que aquele lugar é um terror para ciclistas pois tem as maiores e mais íngremes ladeiras da região.
Eu tinha um Everest pessoal que era a subida da Rua João Ramalho. Passei um bom tempo tentando subir aquilo sem descer da bicicleta nenhuma vez. Eu testei várias abordagens. Começava acelerando ao máximo, começava devagar, tentava com as marchas mais pesadas e depois ia abaixando, tentava com as marchas leves desde o começo… Invariavelmente, eu percebi que sempre que eu olhava pro quanto ainda faltava quando eu já estava cansado, acabava desistindo.
Então, num belo dia, eu abaixei a cabeça e, toda vez que me sentia no limite, eu pensava “só mais uma pedalada”. De uma em uma, eu olhei para o lado e percebi que passei da banca de revista sem nem notar que o final do caminho tinha chegado. Se eu tivesse fôlego, teria pulado e comemorado ao estilo do Rocky Balboa naquela famosa cena da escadaria.
Mais ou menos pela mesma época, comecei a ver muito claro um dos meus grandes problemas. Eu funcionava assim: qualquer coisa que decidisse fazer, tentava entrar numa espécie de internato voluntário. Então, passava a dedicar horas e horas, colocando toda minha energia para que aquela coisa acontecesse.
Ou seja, se quisesse compor um disco, eu abdicava de todas as minhas outras preocupações mundanas e dedicava todo minuto livre que tivesse a tocar, buscar referências e criar.
Parece perfeito mas, na prática, não funcionava pra mim. Depois de não muito tempo, a vida se interpunha de alguma maneira, seja pela força da rotina, seja pelo freio da pura e simples falta de interesse.
Em outras palavras, eu era fogo de palha.
Depois de muito tentar dessa mesma maneira, finalmente caiu a ficha de que repetindo os mesmos padrões, eu continuaria a ter os mesmos resultados: cansaço cognitivo pelo esforço e culpa por não ter conseguido colocar meus planos adiante.
Em uma certa fase do Puxadinho, eu estava diretamente sob o impacto de ter feito um voto de meditação por um ano. Funcionava assim: todos os dias, eu sentava para praticar. Bem simples.
Testar esse objetivo em específico foi muito importante, pois tornou claro um certo processo. Quando comecei, eu encarava uma hora de prática. Às vezes, mais. Pouco tempo depois, a energia se foi e eu lutava até para sequer lembrar de praticar por 5 minutos.
Tendo o padrão de determinar objetivos muito ousados, passei a definir como linha base algo muito ridículo. Sentar para meditar por um minuto, desde que todos os dias — para dar um exemplo.
Ainda assim, eu não só tinha dificuldades em sentar para praticar, como às vezes articulava milhares de razões para fugir.
Hoje eu me pego aqui, escrevendo pro Puxadinho com uma sinusite braba que não quer me deixar. Mas cá estou, fazendo o mínimo.
Então, seja para a escrita, para tirar um álbum do papel ou para meditar por um ano, hoje percebo que tem algo que me faz continuar quando a motivação abaixa a níveis críticos: esquecer da linha de chegada, dos objetivos ousados, dos grandes sonhos e metas. Sem perceber, às vezes transformamos até isso em distrações e obstáculos. Sobra focar no mínimo e bater ponto.
A vida já é muito difícil e tem mil maneiras muito insidiosas de nos puxar para coisas que talvez não sejam exatamente do nosso interesse. É uma salada de trabalho, entretenimento, obrigações e boletos para todo lado que é super complicada de gerenciar. Muitas e muitas vezes, fica difícil entender de onde tirar para encaixar um tempinho com o quê e com quem amamos.
É por isso que sempre vale a pena rememorar os motivos que nos impulsionam a continuar. E, por mais estranho que pareça, não estou falando de atingir metas, de ser útil, de lucrar com seu tempo livre, nem nada disso. Falo, sim, de outra coisa.
No meu caso, todas as vezes que eu fujo de meditar, de dedilhar o violão, de ir treinar ou de escrever um texto, tento lembrar que, sem isso, eu sou uma pessoa muito pior. Fica um buraco aqui dentro que me leva a sofrer muito mais. Então, busco lembrar que comecei a fazer essas coisas num momento da minha vida onde não importava o que eu ia conseguir com isso. Eu só queria me divertir fazendo. Era prazeroso por si só.
Agora eu percebo que quando eu não faço nem o mínimo pelo que alimenta meu coração, estou plantando as sementes para ser um eu que não me traz satisfação e felicidade nenhuma. O eu que se abandona, que se deixa levar por horas de vídeos de 15 segundos e meses da mais pura inércia.
Com isso, não quero dizer para você viver um estilo de vida estóico, duro, super regrado e infalível. Eu estou levantando a mão aqui e dizendo que amo meu videogame, minha cerveja e meus bons passeios de bicicleta sem rumo pela cidade. Por favor, não me tire isso.
Mas tem essa linha, sabe? Uma diferença sutil entre o que é diversão saudável, despressurização para o bem-estar, e o que é apenas vício em dopamina barata e preguiça. No fundo, a gente sente.
E, por mais que no momento da falta de motivação, tudo nos diga para ir fazer outra coisa, todas as vezes que conseguimos bater ponto naquilo que nos importa, rola uma acumulação. Um grão do pó mágico recai sobre o nosso potinho.
No inglês, eles têm essa expressão “pave the way”, que seria algo como “pavimentar o caminho”. Significa dizer que você coloca alguns tijolinhos, anda um pouco e, para dar o próximo passo, você precisa colocar mais tijolinhos e assim por diante. Depois de um certo tempo, a estrada vai estar construída atrás de você — e não à frente como a gente costuma visualizar. É o ato de colocar o tijolo que faz a estrada aparecer. Você não tem que construir uma estrada, só tem que colocar o próximo tijolo.
Subir a João Ramalho de bicicleta sem descer nenhuma vez pode ser um objetivo bobo pra muita gente — e é mesmo. Definitivamente, não vai mudar o mundo. Mas foi um microcosmo da minha vida, um treininho que me fez perceber algo sobre a forma como minha mente funciona. E, de repente, quando consegui, foi super divertido. Liberou algo dentro de mim.
Existe um aspecto muito fantástico, um certo tipo de clareza que só o momento de realização pode mostrar. Eu, um pseudoescritor, chamo sem a menor sombra de dúvida de “indescritível” porque é exatamente isso. Não há como pontuar a recompensa verdadeira pela realização, pois é o caminho que vai determinar o que você vai ter aprendido e como vai se sentir. Isso é só seu.
Concluir o voto de meditação me trouxe uma experiência similar, mas com um impacto bem maior. Mudou completamente a minha forma de ver a vida. É uma das poucas coisas que eu realizei que, posso afirmar sem medo de parecer exagerado, influenciam tudo o que faço hoje, justamente porque descobri coisas sobre mim que — não se engane — ainda se repetem. Porém, exercitando nesse laboratório do voto, eu pude aprender ferramentas para lidar com elas.
Eu venho descobrindo que explicar e consertar tanto a motivação como a disciplina é bem mais complicado do que parece. Também não é exatamente sobre as medidas práticas que você toma, pois o que não faltam são técnicas para ser mais produtivo e, ainda assim, temos um mundo onde um monte de gente não consegue sentar e fazer aquilo que ela própria diz querer. É muito mais profundo. É sobre o eixo que nos mantém de pé, a energia que nos alimenta, o motor que nos movimenta.
As conexões e desconexões que nós somos capazes de criar são infinitas e dependem da bagagem que cada um de nós traz. Mas, para trazê-las para onde possamos vê-las, é importante ter a experiência coletada na prática. Há processos que só podem ser compreendidos por nós quando nos deparamos com o erro e com a necessidade de movimentar alguma peça para fazer algo se encaixar novamente.
Então, cada vez que a motivação nos deixa e a gente descobre como fazer o mínimo para dar continuidade, uma reconexão se estabelece. A gente preenche uma fissura com um pouco de cola e, gradualmente, algo maior se levanta. Descobrir essas fissuras e colocar a cola é a graça do processo, a arte da coisa.
É o que faz ser difícil, mas ao mesmo tempo, incrível.
The Bicycle Boy, de Mateus Urbanowicz
Procurando como ilustrar esse post, acabei encontrando as ilustrações de Mateus Urbanowicz de uma série que ele chama de The Bicycle Boy, cujo nome é bem autoexplicativo. O estilo meio Studio Ghibli, feito com tinta guache me transporta imediatamente a algo bastante nostálgico.
Quando descobri que tinha um curta de animação, eu tive que trazer pra você ver também como é bonito.
O Tiny Desk do Post Malone
Esse Tiny Desk Concert do Post Malone ficou a coisa mais linda. Sem explicações, só dê o play e aproveite.
Escriterapia: curso de escrita com desconto para você que lê o Puxadinho
Eu já comentei aqui sobre a
e como sou admirador da escrita dela. Eu sinto que seja lá o que ela coloca no papel, a tinta é feita das vísceras de tudo que ela sente. Então, é sempre uma grande oportunidade quando ela oferece o Escriterapia, seu curso de escrita.Nessa edição ela vai oferecer sua metodologia para quem gosta de escrever ou quer iniciar um mergulho na experiência da escrita. E também para aqueles que precisam de um convite para desacelerar. O tema da vez é a pausa.
Eu vou estar presente nesse sábado e, graças à generosidade dela, você que está comigo no Puxadinho ganha desconto. É só fazer sua inscrição com o código PUXADINHO.
Nos vemos lá, então?
Escriterapia: a pausa como se nada | imersão online
Dia 26 de agosto, um sábado, das 10h30 às 12h30.
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Como avisei na semana passada, pretendo começar a soltar posts exclusivos para os assinantes. E, com isso, os posts abertos passarão a ser de duas em duas semanas. Estou passando mais uma vez para lembrar que, contribuindo para o Puxadinho com R$10 por mês, você continua recebendo todos os meus posts e se tornará prioridade nas próximas empreitadas que pretendo começar a realizar com o apoio de vocês. :)
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Nota sobre bug no disparo para os e-mails
Bem, por algum motivo, quem abriu a newsletter pelo e-mail, acabou vendo um monte de chamadas para assinar ou fazer upgrade para a versão paga do Puxadinho. Só queria pontuar que houve algum problema no Substack e que não era assim que aparecia para mim no preview do post. Então, peço desculpas por qualquer inconveniente. Vou tentar descobrir o que houve para que não se repita, ok? Um abraço e agradeço pela compreensão.
Cara, como eu me identifiquei com esse texto. Muito obrigado por compartilhar.
Adorei o texto. De verdade. Mexeu comigo e me fez repensar muita coisa. Obrigada por compartilhar.