Meu irmão se afastou — e talvez a culpa seja minha
Ou: Do outro lado da porta fechada

Ter um irmão é uma das experiências mais maravilhosas que essa vida humana me proporcionou. Eu sou o mais velho, por um ano e meio de diferença. Então, quando ele veio, eu também era um bebê e o que nos separava era só a capacidade de andar e de emitir sons com a boca.
Com ele, compartilho memórias e experiências que nenhum outro ser humano na face da terra conhece. Só ele sabe detalhes bobos sobre as horas que passávamos jogando em frente a uma televisão de tubo, as brincadeiras que fazíamos, os amigos que visitávamos. Só ele sabe exatamente a dor de ser abandonado pelo mesmo pai. Só ele sabe o quanto foi suado galgar cada pequena conquista ao longo dos anos, com as dificuldades que surgiram devido a esse fato.
Eu adoraria dizer que sempre tivemos uma conexão sem igual, que nos entendíamos por telepatia, que lembro da primeira vez que o vi na maternidade… sabe, esse tipo de sentimentalismo? Mas não, eu não posso dizer isso.
É óbvio que tenho um afeto imenso pelo meu irmão. Todos os dias eu penso nele — e me preocupo com ele. Mas, desde as brigas pelo controle do Super Nintendo, foram se acumulando mágoas de anos de atrocidades ditas em brigas sem o menor sentido. A distância se sedimentou entre nós.
Em algum nível, isso acontece em várias outras relações. A vida vai passando e alguns caminhos divergem. Nossos amigos, antes tão presentes, somem por aí. Aqueles com quem mantemos o contato, muitas vezes, também mudam. Vocês estão próximos, fisicamente, talvez até tenham alguns encontros, mas a conexão mesmo vai minguando. Aos poucos, vocês se tornam pessoas que não se conhecem.
A diferença, no caso, é que isso aconteceu entre meu irmão e eu. Hoje, sinto que não tenho permissão para participar de forma alguma das decisões que ele toma na vida.
Vejo os eventos acontecendo na vida dele, mas normalmente, sou apenas um espectador. Não há uma troca entre nós sobre quais rotas tomar em meio às bifurcações que se apresentam. Talvez, pelo histórico de discussões acaloradas quando discordamos um do outro.
Em geral, eu prefiro ser a pessoa que apoia se der tudo errado do que ser quem tenta impedir de errar. Mas, em alguns momentos, é difícil, especialmente quando se trata de alguém da família. Você sabe que aquele esforço vai dar errado — ou, ao menos, pensa que sabe. É estranho. Você percebe que aquela pessoa está passando por uma pedra onde você já tropeçou, mas tentar dizer alguma coisa seria o estopim para caras amarradas, trocas de farpas e grosserias gratuitas. Pior, seria o motivo para aquela pessoa fazer o contrário do que você disse, agravando ainda mais o problema, seja ele qual for.
É irônico como eu mesmo já fui assim. Deve ser algo que corre na nossa cultura familiar. Eu também me caracterizava pela teimosia suicida. Evitava ouvir qualquer um, num orgulho besta, uma tendência adolescente à rebeldia boba que não foi fácil de remover. Acho que isso acontece quando estamos cercados de antiexemplos, pessoas que nos moldam por serem o que não queremos ser. É fácil discordar de quem você critica, mesmo que essa pessoa tenha razão às vezes — o que me faz questionar se não fui eu, em algum momento, quem deu motivos para ele se fechar e rejeitar minha ajuda.
Volta e meia, lembro de algumas situações da nossa infância. Nossa mãe precisava trabalhar durante o dia e eu ficava “responsável” por ele. Era minha tarefa levar meu irmão para qualquer lugar onde eu fosse, mas principalmente, pegar o dinheiro que ela deixava para o lanche e ir até a mercearia na esquina, comprar pão e um suco. Eu me sentia o super irmão mais velho com essa incumbência. Comentei com ele sobre essa lembrança e fui surpreendido com uma resposta ríspida, afirmando o contrário — que eu nunca cuidei dele. Alguns pontos da memória têm cores diferentes entre nós.
Além da maneira diferente de recordar de certos eventos, talvez ele tenha se fechado porque, no fundo, eu também não sei abrir a porta. Do alto da minha pretensão, a verdade é que nunca fui lá tão bom em ouvir o que ele tinha a dizer. Sempre quis dar conselhos, como se tivesse as respostas certas guardadas no bolso. Talvez fosse minha forma de tentar ajudar, mas é provável que ele precisasse de outra coisa: alguém que só estivesse ali. É difícil admitir, mas a escuta exige um tipo de silêncio que eu raramente oferecia. O silêncio que acolhe, que não julga, que não tenta consertar. No meu ímpeto de proteger — ou quem sabe provar que sei mais —, acabei erguendo mais paredes.
Além disso, me resta admitir que já fui um irmão ainda mais ausente. Durante anos, eu evitei a influência da minha família, numa tentativa de achar quem eu realmente poderia ser para além desses padrões reprisados. Mudar de cidade foi a desculpa perfeita para agravar esse distanciamento. Talvez, sem perceber, fui eu quem trancou a primeira porta entre nós. Talvez, ele só tenha cansado de esperar.
A família é um território complexo. O carinho e a hostilidade coexistem numa dinâmica explosiva. A convivência, por vezes forçada, abre espaço para uma intimidade deturpada, que se constrói através da negligência, da grosseria — e não do afeto. Mas de uma forma esquisita, não deixa de existir uma confiança nessas trocas de farpas, quase como se fosse uma maneira torta de dizer “faço isso porque sei que você vai ficar comigo”. Afinal, um irmão nunca vai embora. Bem ou mal, ele está sempre ali, ainda que decida se afastar. É assim entre nós. Esteja a situação como estiver, eu fico ao lado da porta fechada, me perguntando o que tem do outro lado.
Hoje, sobrou um diálogo que se dá por meio da troca de memes. Encontramos nisso uma forma de nos comunicarmos sem entrar em detalhes que possam ser a fagulha pra pólvora que cada um carrega. Além disso, temos as coisas que gostamos. A infância juntos construiu um terreno que se transforma em refúgio, mesmo que a área ao redor esteja forrada de espinhos. É lá que sentamos quando queremos compartilhar da presença um do outro. É uma superficialidade íntima que nos conforta.
Em uma dessas coincidências que o universo coloca na nossa frente quando temos um tema martelando na cabeça, eu assistia a um documentário sobre o Hayao Miyazaki, quando ocorreu um momento no qual ele reflete sobre a morte de Isao Takahata, co-fundador do Studio Ghibli. Takahata era alguém com quem ele tinha uma relação agridoce, permeada por amor e ódio, como ele mesmo descreve. Era um ídolo, um amigo e um rival. Nesse momento, é dito por meio de um personagem do filme Meus vizinhos, Os Yamadas: “A aceitação é a única saída para situações inaceitáveis.” Não sei se essa frase tem validade em todas as situações, mas ressoou enquanto eu refletia sobre a convivência com meu irmão. Ela ficou comigo, ecoando.
“A aceitação é a única saída para situações inaceitáveis”… É estranho pensar nisso, porque aceitar não é o mesmo que concordar, nem desistir. Aceitar é reconhecer as coisas como elas são, sem tentar mudá-las à força, sem querer vencer uma batalha que, no fundo, nem era sua. Aceitar a distância entre mim e meu irmão não significa que ela não me machuca, ou que eu desisti de tentar, mas talvez signifique entender que ele tem o direito de fechar a porta — e que, às vezes, a melhor forma de ajudar alguém é respeitar o limite estabelecido. Não se trata de abandonar, mas de estar disponível, sem exigências, caso ele decida abrir a porta por conta própria.
Em algum ponto da vida, é importante não mais tentar consertar os outros. Especialmente se esse outro é da sua família. Talvez essa desistência, que à primeira vista pode soar como abandono, seja, na verdade, um sinal da maturidade chegando. O amor maduro, às vezes, se manifesta na capacidade de respeitar as escolhas alheias, mesmo quando elas parecem erradas aos seus olhos. Você aceita que cada pessoa carrega suas contradições e suas dificuldades — e que tentar corrigir à força é um esforço inútil, muitas vezes motivado mais pelo seu desconforto do que pela necessidade do outro.
De alguma forma, ao amadurecer, você percebe que cada um é dono do seu próprio caminho, com suas quedas e vitórias, suas recusas e reinvenções. Concordar ou não perde a importância diante do fato de que isso não cabe a você. A maturidade, então, talvez esteja na compreensão de que amar alguém não é controlar, mas caminhar ao lado — mesmo que em silêncio, mesmo que à distância.
A verdade é que, muitas vezes, as pessoas que você ama escolhem seguir por caminhos que você não pode acompanhar. É isso: aceitar que fez o que pôde, mesmo que o resultado não tenha sido o esperado. Entender que não dá pra consertar tudo — e mais: que talvez, não tenha nada para ser consertado.
Talvez, aceitar seja a única solução para uma porta fechada.
Às vezes, amar é apenas ficar do lado de fora, esperando.
É amanhã! Autoedição: Como editar seus próprios escritos
Algumas pessoas pediram, então aqui está: abri uma turma do workshop Autoedição: Como Editar Seus Próprios Escritos.
Estou num processo de reformular todo meu projeto editorial, incluindo os cursos. Por isso, decidi que essa será a última edição desse workshop.
Essa turma é para quem ama a escrita ou tem o ofício no dia-a-dia (advogados, psicólogos, produtores de conteúdo, etc). É feita para quem quer aprender como transformar seus textos em versões mais claras, impactantes e bem lapidadas.
Se você sempre quis entender como abordar a edição de forma prática e objetiva, essa é uma ótima chance para mergulhar no processo comigo. :)
Olha só, que legal esse depoimento sobre a última edição.
📅 Quando?
Terça-feira, 10 de dezembro, das 19h às 21h.
Quarta-feira, 11 de dezembro, das 19h às 21h.
💻 Como funciona?
Workshop online, ao vivo, em duas sessões de duas horas cada.
🎯 O que você vai aprender?
Estratégias para ganhar perspectiva sobre o seu texto.
Técnicas de macro-edição (estrutura, ritmo, intenção).
Dicas práticas de micro-edição (linguagem, clareza, transições).
As aulas ficam gravadas por 30 dias, e os participantes recebem um material exclusivo em PDF com checklist e referências.
👥 Quem pode participar?
Escritores de todos os níveis (não apenas profissionais da escrita) que desejam aprimorar seus textos, da primeira à última versão. Apoiadores do Puxadinho têm desconto especial de 20%.
📩 Dúvidas? Escreva para mim no e-mail luri@luri.me ou veja mais detalhes na página do Sympla.
Espero você lá!
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Então, você já sabe o caminho:
“às vezes, amar é apenas ficar do lado de fora, esperando”. infelizmente, às vezes, é isso mesmo. e não há muito o que a gente possa fazer.
Gosto muito dos seus textos, sempre. É bonito ver a sua coragem e sua habilidade em expor seus sentimentos. Como irmã mais nova eu tenho uma visão diferente da sua, mas isso não me impede de compreender como você se sente e desejar que você e seu irmão encontrem um caminho para cultivar a melhor relação possível.