Minha companheira e eu conversamos muito sobre tudo, como é de se esperar de qualquer casal. Porém, tinha uma época na qual ela vinha mais triste e abatida que o normal. Nada na vida dela parecia ter graça. Ela estava pra baixo, vendo as coisas de uma forma negativa. E, principalmente, odiava o trabalho dela.
Isso sempre me soava estranho, porque eu via como inicialmente, esse mesmo trabalho era um motivo enorme de alegria. Eu a via brilhar quando falava sobre tudo o que estava descobrindo e como enfrentar aqueles desafios a nutriam.
Mas progressivamente ela foi ficando mais negativa com relação ao trabalho. Tudo incomodava. Dos joguinhos das lideranças, da convivência com alguns colegas, passando pelas tarefas em si.
Paralelamente, ela passou a consumir muito mais e de maneira até inconsequente. Ela comprava e comprava, sem nem calcular direito como aquilo afetaria o orçamento e os planos futuros.
Eu sabia que ela tinha um grande amor pela criatividade. Quando a conheci, ela cantava ópera e eu já tinha visto ela se debruçando sobre desenhos e pinturas. Ela ama ver pinturas nas redes sociais e até reserva uma parte da renda dela pra apoiar os trabalhos de uma artista em especial.
Lembrei disso e, como eu estava voltando a escrever por amor, percebi que esse processo dela era muito similar ao meu, embora a manifestação fosse diferente.
O desabafo sobre a situação me fez sentir que uma boa parte daquilo poderia ser criatividade reprimida.
Então, sugeri:
—O que você acha de voltar a pintar?
Ela levou a ideia a sério, comprou materiais e ficou super empolgada. Começou a assistir aulas no Youtube e, de repente, estava passando horas e horas pintando. De fato, por uns tempos ocorreu uma mudança nos seus humores, o trabalho ficou menos insuportável e ela parou de consumir tanto.
Agora, coincidência ou não, sempre que se percebe mais tempestuosa, ela fala “nossa, faz tempo que eu não pinto”. Então, ela pára em algum domingo e passa a manhã se reconectando com a pintura.
Eu passei e passo por esse mesmo processo. Quando me distanciei do prazer de escrever ao longo da minha carreira como editor e redator, algo foi fazendo a minha vida ficar mais amarga. Eu também, como já falei, tive a não-tão-brilhante ideia de me afastar da música por achar que aquilo era coisa de adolescente e eu, tão adulto, não deveria me rebaixar tanto.
Acontece que tem algo muito profundo no processo criativo que é semelhante ao brincar. Não dá pra abandonar a ludicidade sem pagar um preço. É fácil observar alguém que se separou do direito de brincar versus um outro que nunca perdeu contato com esse seu lado. O corpo vai ficando curvado, o rosto perde as musculaturas do sorriso, o viço some da pele…
Isso aconteceu comigo. Todas as vezes que eu ia a algum show, lembrava: “poxa, eu sinto muita falta de tocar”. E se sedimentava em mim uma certa tristeza, uma apatia.
Segui assim até ter meu primeiro burnout. Mas como parte do meu processo de cura, comecei aulas de canto, só pra estar perto da música, num movimento tímido. Progressivamente, fui sentindo necessidade de mais. Fiz um EP com amigos, depois fiz um projeto de pesquisa sobre música paraense, comecei a compor meu primeiro álbum e, quando tentei desistir de novo, começou a vir outra vez o desejo de fazer música.
Até hoje, quando termino um projeto musical, eu penso em parar.
Mas a verdade é que quando me distancio do criador autêntico dentro de mim, quando paro de me expressar e de brincar com a criatividade, eu adoeço. Acontece sempre.
Eu não dava atenção pra isso. Costumava ouvir as vozes externas e internas que me criticavam quando eu era adolescente, que diziam que eu era um vagabundo e que eu devia estar fazendo alguma outra coisa que fosse “séria”.
Porém, não posso negar que deixar de dar vazão ao meu eu-criativo é me mutilar. Eu sinto, claramente, como fico menor, mais fraco, menos potente, medroso, ansioso e deprimido.
Eu observo o mesmo processo em muitas pessoas próximas de mim. Tenho o privilégio de conhecer inúmeras pessoas criativas, brilhantes. Muitas conseguiram encontrar formas de se sustentar por meio de seus impulsos criativos. Outras, não.
Mas mesmo essas que não conseguiram, quando bem sucedidas nas áreas que trabalham, ainda sentem que tem algo ali pedindo pra ser cultivado, acarinhado. Ou elas adoecem.
Cultivar a criatividade e a arte por meio da música, da escrita, da pintura, da cozinha, do bordado, da costura, da dança ou — porque não? — do esporte, é vital. É um ato de autocuidado, de amor por si e pelos outros.
Afinal, entregar o seu melhor com empenho, sempre querendo se aperfeiçoar, se divertindo e crescendo no processo… isso é viver com potência e brilho. É se entregar ao prazer.
É se entregar à vida.
Cesta de Compartilhamentos
Erra uma Vez - Livro ilustrado do Tiago Henriques, do Tira do Papel. É uma experiência curtinha mas cheia de vida, capaz de tirar qualquer um da apatia. Comprei a versão de capa dura e não me arrependo.
A newsletter do Austin Kleon - Uma fonte de insights maravilhosos sobre arte e criatividade. É em inglês.
Na Vitrola do Luri: Cheikh Lô
Cheikh Lô é um cantor e compositor senegalês. Ele oferece uma bela mistura de ritmos africanos com jazz e música cubana. O resultado é de levantar o ouvido de curiosidade e dançar enquanto o arroz está no fogo. A segunda música, aos 8:25 minutos é a minha favorita dessa apresentação.
Diário de Produção
Boa notícia! Finalizamos a edição dos vídeos da Live Session do Espaço Interior.
Os áudios estão na fase final também, mas logo devemos fechar isso, juntar as partes do Frankenstein e botar ele pra andar.
Já que estamos na reta final, decidi uma coisa: a data de lançamento do Espaço Interior é 13 de setembro. Anota na agenda aí.
Passando o chapéu
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Um abraço apertado,
Luri
É incrível como passa ano atrás de ano e ainda às vezes é tão difícil lembrar de cuidar, proteger e manter as coisas que nos nutrem, né? Pra mim é fundamentalmente a escrita e às vezes o desenho, e nem sei contar mais quantas vezes "voltei" para essas duas artes, sempre com o rabo meio entre as pernas, percebendo que nem devia ter saído de perto. 😅
Coisa fina esse "escrito" Luri. Entre tantos parágrafos, impressões, auto-constatações e confissões sobre isso, eu fico aqui com o simples obrigado meu caro pelo alerta!!!!! Um abração!!!!