Vivendo além do próprio tempo
Inspirado na sabedoria de um avô e na filosofia de Byung-Chul-Han.
Nos últimos meses, passei um merecido tempo visitando minha mãe. Quando tenho essas incursões na casa dela, acabo pensando mais na forma como se deram minhas relações familiares, amizades e origens. É quase inevitável que meus pensamentos perpassem o meu avô, falecido há uns dois anos.
Meu avô fez de tudo ao longo da vida. Foi pescador, pedreiro, comerciante, feirante. Já ouvi todo tipo de história sobre suas empreitadas profissionais e, provavelmente, por estar reformando a casa da minha mãe — construída por ele com as próprias mãos — acabei lembrando de como ele falava em fazer as coisas “para deixar para filhos e netos”.
Ele falava isso sobre tudo que sentia ter muita qualidade. De um prédio bem feito a uma árvore cheia de frutas no quintal. De repente, soltava: “vai ficar para filhos e netos”.
É uma frase que ficou comigo. Mas como cria dessa época em que vivo, não penso na possibilidade de transcender meu tempo. Sou um consumidor de objetos, de informação, da natureza e às vezes até de pessoas. Vejo isso em mim e em muitos outros ao meu redor. Nossa cultura é assim.
A receita de felicidade alardeada por aí é sempre “a minha felicidade”. Preciso “cuidar mais de mim”, “me colocar em primeiro lugar”, como se não fosse exatamente o que já fazemos.
Num tempo onde a juventude a qualquer preço é um dos maiores motores do consumo, talvez, exista algo de importante em se permitir envelhecer, entender e aceitar que o nosso tempo e espaço na história são limitados. E, simultaneamente, permitir-se enxergar como uma peça dentro de um ciclo menos imediato, menos autocentrado e carente.
Entender que é possível cuidar, cultivar. Viver em uma intenção constante de contribuir ao invés de apenas consumir. Entregar mais do que tirar.
Com isso, não quero dizer realizar uma busca carente e megalomaníaca pela atenção de milhões — outra das armadilhas do nosso tempo. O que tento buscar é uma predisposição constante em ser quem traz um bolo, ao invés de quem só sai de casa se tiver algo pra comer. Ser aquele que ajuda na mudança do amigo, ao invés daquele que só chama quando precisa de algo. Ou, talvez, ser quem simplesmente senta ao lado, ouve e compartilha histórias, tempo e presença. Como um avô.
Essa é uma frase que provavelmente nunca vamos ver em uma propaganda. "Deixe para seus filhos e netos". A mera ideia de plantar uma semente que você não vai usufruir é alienígena para muita gente. É mais fácil vermos o incentivo a gastar tudo o que você conquista em experiências fugidias, ignorando que quase tudo desaparece da memória, para de movimentar energia e nos deixa querendo a próxima (e mais cara) experiência. O resultado é essa ânsia devoradora que não tem fim.
Você provavelmente já conhece o Byung-Chul-Han, o autor daqueles livrinhos que começaram a aparecer em todas as prateleiras de livrarias. Acredito que o escrito mais conhecido seja “A sociedade do cansaço”.
Em uma dessas esperas em conexões intermináveis no aeroporto de Brasília, parei e comecei a fuçar o fundo das prateleiras, onde encontrei outra obra de Byung. Um livro de capa preta desgastada, com um desenho de flor em negativo, chamado “Louvor à Terra”.
Aqui, ao invés de um ensaio pungente sobre as crises fundamentais dos nossos tempos, ele conta de forma poética sobre sua experiência mantendo um jardim durante três anos. Um dos capítulos se chama “O tempo do outro” e me traz de volta a essa reflexão sobre estar conectado com um tempo que não o meu.
No jardim, Byung experimenta as estações de maneira bem mais intensa, como se o passar delas fossem vidas inteiras, morte e continuidade se entrelaçando.
Com isso, tem uma experiência de afastar-se um pouco da fixação ao eu. Entrega-se ao ritmo de cada uma das suas plantas, percebendo como é preciso aguardar que elas floresçam como sua natureza manda, cada uma no seu tempo. No entrelaçar desses diferentes tempos, ele encontra uma rendição e observa algo que me fisgou:
“É admirável que cada planta tem uma pronunciada consciência de tempo, talvez até mais do que o ser humano, que se tornou hoje sem tempo, pobre de tempo.”
Ele segue comentando sobre como o jardim torna possível uma experiência intensiva de tempo. E como seu trabalho ali o tornou “rico de tempo”. O jardim, segundo ele, deu “ser e tempo”.
Esse afastar-se do ego ao se deparar com o tempo é uma experiência que me remete ao contato com meu avô. Algo ali era diferente, ainda que ele não fosse um grande pensador e nem mesmo tivesse esse tipo de aspiração. Sua vida não acontecia em espaços e tempos virtuais. Ele apenas vivia, observava e cuidava, mas também negligenciava e se fechava conforme o contato que era estabelecido com filhos e netos. Ainda assim, ele pensava na morte, no que seria deixado para além dele próprio.
Byung encerra o capítulo de seu livro de um jeito muito bonito.
“Conhecimento é amor. O olhar amante, o conhecimento conduzido pelo amor redime as flores de sua falta de ser. O jardim é, portanto, um lugar de redenção.”
Venho buscando experiências que também me tragam esse contato com a rendição, o esperar incerto e me coloquem a perspectiva da lentidão, da longa viagem, do vazio intermediário. Um cultivo rotineiro que vai me levar ao fim dos meus dias, assim como levou meu avô ao fim dos dele.
A morte assusta muita gente e assustava ele também, apesar de tudo que eu disse aqui. Meu avô do mundo real certamente não tinha consciência desse sentimento transcendental. Mas eu idealizei dentro de mim um avô arquetípico que me coloca em contato de volta com a motivação para a simplicidade, a amorosidade e a presença. Um avô que gostaria de trazer pra dentro de mim cada vez mais.
Admiro essa possibilidade de encontrar o fim com rendição e abertura. Ver o futuro como um espaço tão amplo que cabe tudo. Inclusive uma vida além da minha existência.
Sea Of Stars é uma declaração de amor
Nos últimos meses, passei umas temporadas em conexões, de forma que o Nintendo Switch se tornou um importante companheiro. Eu tinha comprado Sea Of Stars, mas fui jogando lentamente. Não sabia se valeria falar sobre esse jogo aqui no Puxadinho, mas cá estamos.
Eu simplesmente amei Sea Of Stars. É um game que segue uma linha que lembra os JRPGs dos anos noventa sem ser uma imitação barata. A arte é simplesmente um desbunde, um cenário mais lindo que o outro, com personagens coloridos e carismáticos que fazem você ficar observando cada detalhezinho. A história demora pra engrenar, mas faz você se apegar com o tempo. Caso você goste de dedicar umas horinhas a jogos mais descontraídos e tenha um espaço afetivo pros RPGs, então, eu recomendo muito.
Inclusive, tá em promoção na eShop.
Vamos brincar de Luri Respondendo Leitores?
Tenho visto por aí esse formato de texto onde os leitores mandam suas perguntas e o autor/escritor/produtor de conteúdo faz seu melhor pra responder. Meu amigo
faz isso muito bem no Instagram, mas eu gostei especialmente da forma como a fez na news dela e, por isso, decidi experimentar também. :)Pode deixar um comentário livre ou perguntar sobre escrita, meditação, videogames, detalhes específicos sobre textos que já escrevi antes ou pedir opinião sobre alguma coisa. Tudo é bem vindo e o resto a gente ajusta no caminho. Topa?
É só preencher o formulário aqui.
Puxadinho retomando atividades em 2024
Como eu tinha avisado na última edição do Puxadinho, em dezembro, aproveitei uma série de eventos pessoais pra descansar. Por isso, estou voltando só agora no final de janeiro. O tempo, no entanto, me fez bem. :)
Estou com gás novo pra escrever e experimentar algumas novidades, começando pelo formulário de perguntas e respostas aqui em cima. Tem mais ideias pra colocar em prática, mas vou avisando conforme for desenrolando.
Por enquanto, só queria mesmo retomar a conversa e dizer que estou feliz em estar de volta.
Um abraço apertado!
Contribua com o Puxadinho do Luri
Eu publico dois textos por mês no plano gratuito, mas contribuindo com o Puxadinho com R$10 por mês, você recebe mais dois textos exclusivos (tornando a periodicidade semanal) e se torna prioridade nas próximas empreitadas que pretendo começar a realizar com o seu apoio. :)
Então, para me ver feliz e contribuir com a existência e crescimento do Puxadinho, você já sabe o caminho:
Adorei o texto sobre seu avô, me fez refletir sobre várias aspectos da minha vida que nunca tinha olhado.
Obrigada pela partilha. Enquanto lia fui lembrando dos meus avós e tias-avós, que já partiram. O tempo parecia correr de forma diferente da minha, e em meio à tantas questões do cotidiano eles estavam sempre dispostos a acolher dores de cotovelo ou de joelhos ralados, um café recém passado e muitas histórias pra contar.