Hoje vai ser diferente.
É dia de escrever… colocar a cara no mundo, sabe?
Mas, antes, tem que terminar o freela. É importante levar umas encomendas nos correios. Ainda tem que fazer o almoço e lavar a louça. De tarde, não pode deixar de cortar o cabelo e nem pensar em esquecer de responder os emails. Também precisa colocar a roupa pra lavar, levar o cachorro pra passear e buscar algumas coisas no supermercado.
Então, de repente, o dia acaba e você fez tudo. Menos aquilo que realmente queria.
Caso você tenha uma profissão ou aspiração criativa, provavelmente já teve um dia parecido com esse. Eu, com certeza, tive.
E, embora, muitas vezes essas justificativas pareçam absolutamente legítimas, segundo Steven Pressfield, autor dos livros A Guerra da Arte (mudaram o título na nova edição) e Turning Pro, elas têm um nome: Resistência.
O conceito não é difícil de entender.
Você já levou pra casa um instrumento e deixou ele acumulando poeira? Já abandonou uma dieta? Ficou por meses pagando uma academia que não frequentava? Pensa em meditar e não medita? É um escritor que não escreve, um pintor que não pinta, um cantor que não canta, um empreendedor que nunca abriu um negócio?
Então, você sabe bem do que se trata a Resistência.
As duas Vidas
Steven Pressfield afirma que a maioria dos criativos possui duas vidas. Essa na qual somos bons cidadãos e pagamos nossas contas, obedecemos o chefe e seguimos os conselhos dos nossos pais. A vida de todos os dias, sem grandes propósitos. Essa ele chama de Vida que Vivemos.
Mas para além dessa normose, há pessoas que têm um imaginário sobre quem elas realmente podem se tornar. Sobre aquilo que elas podem deixar e como podem contribuir para a sua vizinhança, seu bairro, sua cidade e, quem sabe, até para o mundo. Tem pessoas que sentem lá no fundo uma energia que as movimenta em direção a algo, uma ideia fixa, uma vontade do fundo do coração que nunca passa.
Essa vida que vai além de si próprio, baseada em ideais e sonhos, essa vocação sussurrada no seu ouvido… isso Steven Pressfield chama de A Vida Não Vivida.
E entre as duas, encontra-se a Resistência.
Definindo a Resistência
A receita para o aparecimento dela nós já conhecemos. Quanto mais empolgados estamos para iniciar um projeto, quanto maior a importância dele e quanto mais perto ele vai nos deixar de realizar nossos sonhos, mais difícil se torna efetivamente sentar e fazer o trabalho.
Qualquer ato visando um crescimento, que nos aproxime do nosso ideal mais elevado, da nossa vida não-vivida, vai evocar a Resistência em toda sua potência e da forma que for mais apropriada pra frear o seu caminho.
A Resistência é essa força impossível de ser acessada pelos olhos, boca, nariz, língua e tato, mas que mesmo assim pode ser sentida. Ela é uma força de repulsão que nos afasta, nos distrai, nos impede de fazer o nosso trabalho.
Muitas vezes, ela tem uma aparência externa e recruta aliados, vem na forma de um chefe chato, uma briga no seu relacionamento, algo que quebra na casa e que precisa subitamente da sua atenção. Ela pode até mesmo surgir como críticas vindo de outras pessoas, dizendo que você não é o mais o mesmo, que está negligenciando aspectos da sua vida em prol de um sonho impossível. Ainda assim, ela não é algo que vem de fora. A Resistência é interna.
Como a Resistência opera
É preciso tomar cuidado com as promessas da Resistência. Ela vem como for necessário, um copo de bebida pra relaxar, uma nova oportunidade pra um date dos sonhos ou até um emprego com salário alto. Porém, ela sempre mente, ela sempre engana.
Por trás desses benefícios imediatos sempre vai ter a consequência do afastamento do seu verdadeiro propósito e a insatisfação profunda que surge, inevitável, quando o tempo passa e você permanece longe da Vida Não Vivida.
Um dos enganos mais comuns é pensar que vai existir um momento no qual tudo fica mais fácil e a Resistência deixa de ser um problema. Porém, ela não descansa. Henry Fonda, um dos maiores atores da história do cinema e do teatro, mesmo aos 75 anos de idade, contava que ainda vomitava antes de cada apresentação.
Além disso, quanto mais perto do seu objetivo, mais forte ela fica. Em seu livro, Pressfield conta sobre Odisseu que, vendo seu navio se aproximar de casa, decide tirar um cochilo. Então, seus subordinados tentam roubá-lo, mas acabam liberando os Ventos Adversos que o deus Éolo prendeu. O resultado é que o navio retrocede o caminho quase todo, o que o força a enfrentar novas adversidades, até que ele, enfim, retorna sozinho pra casa.
Parece familiar? Quantas vezes você estava próximo de realizar um objetivo e todos os seus piores pesadelos começaram a se realizar? De repente, o carro quebra e você tem que pagar o conserto, seu parceiro começa a te cobrar por estar trabalhando demais ou você começa a ficar gripado constantemente próximo de terminar um projeto. Eu mesmo já passei por todas essas.
Na minha experiência, sempre que esses obstáculos apareceram, o problema não era tanto a situação em si quanto alguma coisa dentro de mim querendo parar. É um movimento que não faz tanto sentido, mas está lá. Essas coisas são um saco? São inconvenientes? Sim. Mas aqueles obstáculos me incomodavam além do razoável. Eu os via como maiores do que realmente eram e aproveitava a chance pra tentar desistir.
Porém, é importante observar que a Resistência só se apresenta se você estiver na direção da Vida Não Vivida, nunca ao contrário. Se você está pensando em desistir de estudar à noite pra mudar de profissão e só ficar em casa assistindo séries até dormir no sofá, não se preocupe… nada vai te impedir. Pelo contrário.
A Resistência é como uma bússola. Ela aponta diretamente pra nossa vocação mais profunda. Aquilo que mais evoca a Resistência em nós é justamente o que mais precisamos fazer.
Vencendo a Resistência
A Resistência é um mal universal. Quando nos deixamos levar pela apatia ou pelo vício em notificações, estamos seguindo um padrão humano que é compartilhado até pelas pessoas mais bem sucedidas. Estamos tentando nos afastar do sofrimento e buscando a felicidade.
É impossível erradicar a Resistência das nossas vidas. Sempre que quisermos progredir em algum sentido, ela vai estar lá.
A Resistência é inseparável do medo. Ela é seu eu atual se protegendo da morte, evitando a todo custo deixar de existir e, para isso, diz qualquer coisa. O que importa é te convencer a parar.
Abraham Maslow diz algo que complementa bem esse tópico.
"Tememos nossas possibilidades mais elevadas… Em geral, temos medo de nos tornar o que imaginamos em nossos melhores momentos, nas condições mais perfeitas e mais corajosas."
Mas, como se trata de uma característica inerente, precisamos aprender a lidar com ela. Conhecê-la, entender seus mecanismos e, principalmente, as maneiras como ela se adapta às nossas subjetividades.
Para Steven Pressfield, o caminho é tornar-se um profissional.
Ele define o profissional como um ideal que se opõe ao amador.
Enquanto o amador faz o que faz em tempo parcial, apenas por prazer, como um hobby ou passatempo, o profissional arrisca seu pescoço e leva seu trabalho até as últimas consequências. Ele se compromete integralmente, dá tudo de si.
Para o profissional, seu trabalho é tão importante quanto a caça é para um animal faminto. Sem isso, ele definha até a morte.
Tornar-se um profissional é uma decisão a ser tomada todos os dias, é uma ética de trabalho, uma lista de princípios claros que conduzem à execução de um projeto.
Steven Pressfield diz que quando um profissional senta para fazer o trabalho, ele coloca em ação forças misteriosas que produzem inspiração. Ele sabe que, depois de começar, ela vem.
Um amador, por outro lado, espera que a inspiração surja milagrosamente.
Henry Fonda, que citamos antes, vomitava no banheiro, sim. Mas em seguida, se limpava e avançava para o palco. Aterrorizado, ansioso, tremendo. Mas assim que entrava em ação, sabia que o medo recuaria e ele conseguiria trabalhar.
Da mesma forma podemos seguir lidando com a Resistência. Não é que vai chegar um dia no qual você vai perder o medo. Mas sim que podemos aprender a continuar apesar dele.
* * *
A visão do Steven Pressfield foi bem importante pra mim em uma certa fase da vida, embora, hoje eu olhe com um pouco de criticismo. Sinto que, em certos momentos, falta um pouco de noção de contexto que adicionaria uma camada de compaixão super importante, ainda mais quando estamos cada vez mais considerando os impactos socioeconomicos e políticos também nas microdecisões da vida. Ainda assim, acho que se olharmos com essa ressalva, podemos extrair muita coisa positiva dos livros dele.
Eu sou constantemente dominado pela Resistência e todas as suas variações. Na minha experiência, tem dia que é impossível, mas em outros dá pra ir em frente e matar o leão na unha.
Claro que existem obstáculos e obstáculos. Mas acredito que uma boa parte deles são gerenciáveis. Eles tornam o caminho mais difícil, mas também fazem a conquista mais saborosa.
Escrever nos horários livres entre trabalho e obrigações da casa é péssimo, mas cada texto publicado se transforma em uma realização. Tocar com a guitarra no fone de ouvido e cantando baixinho na madrugada é chato, mas depois você lembra da história e fica ainda mais feliz quando alguém gosta da composição.
Tem uma frase que eu aprendi e que carrego comigo:
“Não existe obstáculo ao caminho, o obstáculo é o caminho".
É inevitável, qualquer projeto se depara com obstáculos, mas o pior de todos, o verdadeiro inimigo vem de dentro. É a forma como olhamos pra tudo que acontece ao nosso redor.
Assim como é importante não romantizar as dificuldades, é essencial também ver a possibilidade de transmutação e como, muitas vezes, é nelas que reside a matéria-prima para nossas criações.
Cada um de nós tem um contexto único, um arranjo externo e interno impossível de ser reproduzido. Como diz o Emicida, “você é o único representante do seu sonho na terra".
A questão é que os obstáculos não só fazem parte do sonho como são o meio para a realização dele. Se uma determinada dificuldade se impõe, lidar com ela é o caminho.
Complicado? Com certeza. Mas ninguém disse que seria fácil.
Na Vitrola do Luri: Mdou Moctar
Procurando por música africana, eu ouvi falar sobre esse artista, Mdou Moctar, cuja origem é um povo nativo seminômade, os Tuaregues. Muçulmanos, eles vivem ao norte do Saara, têm uma língua e um alfabeto próprio. São conhecidos por fazerem rotas comerciais no deserto e serem também agricultores.
Mdou Moctar é o nome artístico de Mahamadou Souleymane, guitarrista do Níger que toca a música tradicional da sua cultura, aliando e adaptando ao rock. Encontrei essa live no KEXP, que é um ótimo canal, se você quiser garimpar.
Uma das coisas que eu mais gosto em procurar músicas de outros eixos que não o Americano/Europeu, é que acabo descobrindo texturas e sabores musicais totalmente alienígenas, quase como se tivesse descoberto um portal pra algum universo paralelo.
Eu fico muito intrigado quando encontro algo assim, porque o território melódico e harmônico é totalmente diferente, é como se deparar com o desconhecido e não saber onde colocar as mãos, como cumprimentar ou comer. As melodias nunca vão pra onde você espera, a pulsação da música tem outro suingue, a voz canta com outras acentuações. É maravilhoso!
Diário de Produção
Pois é, mandei mais uma newsletter essa semana. ;)
Eu tive um pequeno surto criativo e consegui preparar mais textos do que imaginava. E, como bom ansioso que sou, não quero esperar um tempão pra colocar no mundo.
Não vou prometer, mas talvez mande duas newsletter por semana durante algum tempo, só pra ver o que acontece. Se você gostar, se achar demais… pode me falar que eu vou ajustando de acordo.
Passando o chapéu
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Um abraço apertado,
Luri