Quando dói porque deu certo
Tudo que foi moldado, colado, esticado, padronizado ou controlado tende a voltar ao seu estado irregular. Mas antes...
Não houve nenhum estrondo, nenhum grande abalo. Nenhum prédio caiu, nenhum poste foi derrubado. Não teve nenhum engavetamento de veículos na estrada. Nenhum tsunami, terremoto ou tornado. Nada que movimentasse muitos clicks ou levasse o assunto aos trending topics.
Também não teve nenhuma traição. Ninguém enganou ninguém, nem saiu com um amigo ou com a secretária. As brigas não chegaram a ter gritos, nem maiores sinais de violência ou drama.
Na verdade, bem pelo contrário. As conversas, apesar de regadas a muitas lágrimas, eram bem civilizadas. Os argumentos não precisavam ser muito discutidos. Nada que pudesse ser contra-argumentado e, portanto, mudado. Não.
Dias antes, seguravam as mãos um do outro. Dormiam lado a lado. Tomavam café da manhã juntos. Aos finais de semana, comiam fora e mantinham o hábito de procurar um lugar novo pra visitar sempre que se sentiam entediados.
À noite, a opção era ver um filme, uma série. Alternavam quem decidia o play da vez.
Conversavam muito, sobre tudo. Riam. Às vezes tinha um mau humor com a limpeza. Em certos momentos, a bronca passava dos limites e chegava a hora de pedir desculpas. Em geral, a tensão não durava muito.
Não dava pra entender muito bem o que estava acontecendo.
Saiu um e depois o outro. Os planos, os sonhos, as esperanças. Tudo colocado em cima da mesa. Ali ficaram.
Chega a hora de procurar uma casa que não seja habitada por fantasmas.
Cada dia depois disso é uma sucessão de novas tentativas. Outras pessoas se revezam em mesas de bar, de restaurantes e cafés. Alguns desses primeiros encontros viram segundos e terceiros. Até outros relacionamentos acontecem.
A esperança de tentar novamente, experimentar novidades e descobrir o mundo começa a se transformar em uma obrigação. Mais uma tarefa a cumprir.
De repente, fica claro que nada tem o mesmo sabor. E o problema que se apresenta não é que aquilo deu errado e agora ficou uma enorme ferida impossível de curar.
Deu certo.
Foi tão bom que o resto ficou pálido, perdeu a cor.
Nada mais natural do que selecionar bem o que aparece. Ninguém vai querer entrar na primeira oportunidade só porque é o que está no caminho. A vida tem várias faces, vários cheiros, vários corpos. Dá pra tentar de novo.
Mas por mais que seja possível encher de placas marcando os buracos e galhos que nos derrubam, as surpresas sempre chegam. Você espera mais um tapão e se depara com um abraço aconchegante, um rosto no rosto, um cafuné na nuca.
É assim que volta e meia, a vida dá um jeito de nos trazer de volta. E, em alguns casos especiais, ela decide que é hora de deixar as coisas funcionarem por um período mais longo.
Então, de repente, vem um relacionamento cheio de cumplicidade, um período profissional onde tudo é interessante e o salário é recompensador, um grupo de amigos que acolhe, nutre e incentiva…
Às vezes o que é bom fica tanto tempo que parece até ser a norma.
Então, aquilo vira rotina e expectativa. Uma cadeira de balanço na varanda, um livro, um cafezinho, um lar.
No entanto, a realidade é uma só: nada, nada mesmo é para sempre. Nada corre tranquilo por tempo demais. O estado natural das coisas é o atrito, o imprevisto, o irregular. A curva, o assimétrico, o acidentado.
É difícil assimilar isso.
Parece que esse estado pontiagudo está errado. Então, quando as rachaduras voltam a aparecer nas estruturas, fica evidente que existem processos que não podem ser evitados. Tudo que foi moldado, colado, esticado, padronizado ou controlado tende a voltar ao seu estado irregular. As coisas quebram. O que é vivo morre.
Tem magia e beleza nisso. Houve vida!
Ainda assim, dói.
Não é que dói porque deu errado. Dói porque deu certo.
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Que lindo!
Luri, esses dias eu tava pensando em ti, que fazia muito tempo que não recebia cartinha. Nossa, esse texto ressoou demais por aqui. O bom é que a dor também não é eterna né. Na oscilação a vida se organiza (que paradoxal). Abração pra ti!