POV: A vida te derrubou mas você caiu pra cima
Como fui expulso da capital e (parece que) foi uma boa coisa.
Acordei no susto.
Um galo cantou altíssimo, o que me fez quase cair da cama. Nunca tinha notado como os insetos podem ser escandalosos à noite e como os pássaros são capazes de alvoroço pela manhã. Até os cachorros, de vez em quando, decidem assumir o protagonismo e se comunicarem com todos os seres escondidos no mato.
Ontem, eu acordava com as sirenes, buzinas e pessoas gritando porque estavam falando com alguém do outro lado da rua. Que bizarro, imaginar que o som do caos urbano possa ser mais natural pra mim do que os bichos na natureza. Mas é, né? Cresci no meio do asfalto. Sou a definição do menino da cidade.
Mas isso não me impediu de fazer uma mudança. É engraçado contar isso desse jeito porque esses movimentos na vida, normalmente, são feitos com muito planejamento. Ou, pelo menos, é o que parece quando você acompanha a vida das pessoas pelo Instagram. No meu caso, no entanto, é a terceira vez que minha vida muda completamente da noite pro dia. Zero planejamento, zero noção de que isso ia rolar. Mas rolou. De novo.
Lembro da primeira vez. Numa semana, eu estava planejando o primeiro disco com a minha banda, prestes a terminar o curso de Design de Produto, tinha acabado de alugar uma kitnet próxima da faculdade, estava com um empreguinho de jovem andando até bem... então, de repente, recebi uma daquelas propostas que só acontecem uma vez na vida. Teria emprego, teto e suporte para ir para São Paulo. Eu, basicamente, assumiria a vida de um funcionário que tinha decidido sair da empresa. A dele, seria minha rotina pelos anos seguintes.
Assim, na outra semana, eu estava de passagem comprada, deixando pra trás tudo que eu conhecia. Do calor insano de Belém para o inverno paulistano. Ainda lembro de chegar em Guarulhos e olhar num daqueles displays gigantescos a temperatura. Seis graus celsius. Para quem tinha pego o avião de madrugada suando, o contraste foi enorme.
Vivi muito feliz em São Paulo. Confesso que sinto falta, muitas vezes. Tive uma fase deliciosa, de muita descoberta, muito aprendizado, fiz amigos incríveis com os quais mantenho contato até hoje. Mas, como é de se esperar, tudo passa. São Paulo me deu a minha ética de trabalho, fez de mim o profissional que eu sou. Mas, depois de uns anos, também fez comigo o que faz com muita gente: me sugou a alma. Eu estava exausto, entrei em burnout e o que antes parecia tão bonito, agora me machucava. Nesse clima, mudei pra Vitória, no Espírito Santo.
Praia a dez minutos de casa, a orla do Jardim Camburi para caminhar todos os dias, um povo bonito de dar inveja (sério, o pessoal aqui malha muito). Socializei bem menos, um pouco pela natureza das pessoas daqui, mas também por ter trabalhado apenas em home office. Sem um ponto de contato diário, é complicado estabelecer relações. Ainda assim, os poucos amigos que tenho, levo comigo de novo.
Agora, a impermanência veio mais uma vez. De Belém para São Paulo, para Vitória, e agora, para Aracruz. Depois de ser demitido e sobreviver da minha escrita como deu por alguns meses, veio uma daquelas rasteiras que não tem como esquivar. A especulação imobiliária me fez vítima e vou ter que deixar o apartamento que morei nos últimos seis anos.
Em meio a toda a dor de cabeça que uma mudança não-planejada ocasiona, vim parar no bairro do Coqueiral de Aracruz. É um bairro planejado, construído na década de 1970 para abrigar os trabalhadores da fábrica Aracruz Celulose (atual Suzano). Chegando aqui, o impacto foi imediato. O ar é tão limpo que chega a expandir os pulmões, o cheiro das árvores permeia todo o ambiente e, apesar das manhãs terem uma sinfonia de galos agitados, a regra no resto do dia é o silêncio.
É maluco dizer isso, mas parece que a vida, de um jeito bem bizarro, às vezes nos derruba e a gente acaba caindo pra cima.
Há muito tempo, eu venho insatisfeito com a minha realidade. Trabalhando para um caralho e, no final, tendo minha renda devorada pelo equivalente aos espelhinhos que os portugueses trouxeram pra cá. Eu consumo meu tempo de vida pra conseguir tomar uma cervejinha artesanal num lugar bonito. Na real, trabalho remotamente há anos — sim, privilégios. Não tenho filhos e nem pet. Ou seja, não tem nada que me prenda ao espaço geográfico de uma grande cidade, a não ser a minha vontade de ter boas fotos e sair de vez em quando pra ver um showzinho de banda underground.
Só que a pior parte é que, ultimamente, nem isso estava acontecendo.
Eu estava tentando bancar a minha permanência na capital por que mesmo? Hábito. Inércia. Ego. Sinceramente, não sei.
Agora, do nada, veio essa oportunidade e, com ela, mil outras possibilidades com as quais nunca sonhei. Não nego, no começo, o que eu senti foi pânico, uma sensação de fracasso gigante. Mas, agora, depois de alguns dias… não é que eu estou adorando? Eu ando nas ruas, as pessoas dão bom dia. Tem crianças andando de bicicleta sozinhas. Tem goiabeiras com muitas frutas pra você pegar, se quiser. Tem uma estranha sensação de que você é visto — pro bem e pro mal.
Eu lembro, agora, como eu mesmo ando pela cidade enterrado no meu próprio pensamento, ignorando tudo e todos, alimentando meu ego com publicidade, medindo o quanto eu consigo me parecer com a pessoa que eu vi no Instagram ou no Pinterest. Se antes algo em mim já sabia que isso não fazia o menor sentido, agora parece que o resto das peças da fantasia que eu vestia estão caindo.
Tem coisa muito mais importante que acontece fora das telas. Tem um mundaréu de gente que não dá a mínima pra última tendência de comportamento da geração Z no TikTok. A vida está acontecendo, o chão está girando e a gente perdendo tempo, achando que o marketing do Duolingo representa a realidade — pode trocar a empresa por qualquer outra, dá na mesma.
Sei lá, só queria dizer que ando bem de saco cheio de todos esses papos de internet. Talvez, eu esteja só ficando velho. De qualquer forma, pelo menos por enquanto, meu lugar é longe.
Amanhã, quando o galo cantar, não vou mais acordar no susto. Vou acordar sabendo que esse barulho é o convite para aproveitar essa nova fase. Um convite pra lembrar que existe vida acontecendo fora da minha cabeça, fora das notificações, fora dessa urgência inventada de estar sempre conectado com o que todo mundo está fazendo.
Não sei se isso é só uma fase, se daqui uns meses vou estar com saudade das opções infinitas da cidade grande. Pode ser. Afinal, se me conheço bem, tenho essa tendência a ficar desejando tudo o que não posso ter. Ainda assim, por enquanto, estou curtindo essa sensação estranha de não precisar provar nada pra ninguém. De não ter que justificar por que não posto story todo dia ou por que não frequento os lugares certos.
Talvez seja isso que eu precisava: algo que me reconectasse com a liberdade — sempre presente — de parar de performar quem eu sou.
***
Sei que sumi nas duas últimas semanas e, por isso, achei importante trazer o que está acontecendo. Está uma fase bem corrida, estou lidando com a entrega do apartamento antigo e a entrada na morada nova. Isso envolve muito trabalho e muito dinheiro. Como sou um eupreendedor, minhas atividades profissionais ficaram praticamente paradas nesse mês o que, obviamente, impactou tudo.
Então, eu gostaria de passar o chapéu. Caso você sinta que a minha escrita te beneficiou de alguma forma e queira ajudar com os custos dessa mudança, deixo aqui meu pix: luri@luri.me
Mas, de um jeito ou de outro, como sempre, agradeço por estar sempre aí.
Com carinho (e um galo cantando ao fundo),
Luri
Que essa mudança traga bons ventos, Luri. E que o novo velho mundo, esse que segue girando e esperando ser notado, te preencha e te encha de inspiração. Um abraço em você!
Acho que vc ganhou na loteria da vida nessa mudança :)