Objetivo de vida: bondade radical
Uma pulga que o discurso de George Saunders colocou na minha orelha
É a sétima série. Uma nova garota se juntar à turma é um evento quando todos cresceram no mesmo bairro, estudando na mesma escola, cultivando as mesmas amizades e desafetos.
Ela, claramente, é do tipo mais tímido. Não fala muito alto e evita se fazer notada. Seu tamanho reduzido reforça a armação azul dos óculos meio gateados. Os garotos mais agitados da sala não perdem tempo e começam a apontar o fato de que aqueles são “óculos de velha”.
Nervosa, ela se esconde atrás do tique de mastigar a ponta dos cabelos, o que só atiça ainda mais a crueldade inocente das crianças (como diria o Cazuza). “Seu cabelo é gostoso?”
Seus olhos foram cada vez mais baixos e distantes, como se evitar o olhar fizesse ela ficar invisível e, de alguma forma, a isolasse e protegesse.
Algum tempo depois, sem alarde, sem tragédia ou qualquer tipo de drama, sua família se mudou. Fim.
George Saunders conta esse evento mais ou menos dessa forma em um discurso que ofereceu aos graduados da Universidade de Syracuse, no estado de Nova Iorque, em 2013.
É curioso pensar que essa história de final anticlimático tenha sido entregue assim, como abertura de um discurso para um grupo de formandos, ávidos por inspiração para enfrentar a nova jornada que se abre à sua frente.
Mas aquele episódio trivial grudou em George. E, mesmo décadas depois, ele ainda se pegava pensando nisso.
Com o distanciamento que os anos oferecem, Saunders reflete sobre o que importa para ele, naquele momento. Já que discursa para jovens, nada melhor do que oferecer um pouco da perspectiva que a idade traz. Nesse caso, ele fala sobre seus arrependimentos.
“O que eu mais me arrependo na vida são falhas de bondade.”
Eu escrevi uma outra vez sobre esse discurso, cerca de dez anos atrás. Ali, minha perspectiva era outra. Eu estava mais próximo dos formandos do que do Saunders, mas ainda assim, essa fala gerou um impacto em mim.
Ultimamente, venho pensando muito sobre a velhice. Ver os cabelos brancos ganhando destaque nas laterais da cabeça estão trazendo urgência ao tema. A morte do jovem Luri está me fazendo sonhar o velho Luri.
Note como é raro ver pessoas idosas que não perderam o sorriso. Envelhecer dói em muitos lugares, não só no corpo. Não é nada bonito.
Ainda assim, eu quero ser aquele tio ou avô que ri. Não me tornar um velho amargo está no topo das minhas prioridades.
“Então, deixem-me dizer isso. Há jeitos de fazer isso. Você já sabe disso por que, na sua vida, houveram períodos de alta e baixa bondade, e você sabe o que o aproximou de um e afastou do outro. Educação é bom; aprofundar-se em um trabalho de arte: bom; rezar é bom; meditação é bom; uma conversa franca com um amigo querido; engajar-nos em algum tipo de tradição espiritual – reconhecendo que houve incontáveis pessoas realmente espertas antes de nós que se perguntaram as mesmas questões e deixaram respostas para nós.”
Mas não dá pra ser ingênuo e achar que vou encontrar um caminho sozinho. Minha aposta é que posso encarar o projeto do Velho Luri como quem pensa em uma transição de carreira. Ninguém aprende uma profissão nova sozinho. Você faz cursos, estuda, aprende, treina.
Eu acredito nisso. Sabedoria pode ser aprendida. Bondade também.
Melhor dizendo… sem buscar aprender sobre amor, compaixão e generosidade, eu não vou ser o Velho Luri que tanto quero. Eu vou ser apenas velho.
“Uma coisa a nosso favor: algumas dessas coisas de ‘se tornar mais bondoso’ acontecem naturalmente, com a idade. Deve ser uma simples consequência do atrito: enquanto vamos envelhecendo, percebemos o quão inútil é ser egoísta – quão ilógico, na verdade. Passamos a amar outras pessoas e, de certa, nos contradizemos na nossa própria centralidade. Nossas bundas são chutadas pela vida real, e as pessoas vem em nossa defesa, e nos ajudam, e nós aprendemos que não estamos separados, e não queremos estar. Vemos pessoas próximas e queridas nos deixando e gradualmente nos convencemos que nós também iremos (algum dia muito distante de agora). A maioria das pessoas, quando envelhecem, tornam-se menos egoístas e mais amáveis. Eu acho que isso é verdade. O grande poeta de Syracuse, Hayden Carruth, disse, em um poema escrito perto do final de sua vida, que ele era ‘predominantemente amor, agora.’”
Nisso eu discordo do Saunders.
Ele diz que “se tornar mais bondoso” vem com a idade, como num processo automático de sofrer e aprender. Mas eu já vi muitas pessoas sofrerem pra perceber que, muitas vezes, sofrimento é só sofrimento. E, nos piores casos, só nos deixam mais fechados, mais amargos, mais medrosos.
Não culpo ninguém, afinal… quando apanhamos da vida, nada mais natural do que querer melhorar nossas defesas. O problema é quando usamos estratégias que só pioram as coisas.
Ainda assim, Saunders fala sobre o relato do poeta Hayden Carruth e isso ressoa em mim, quando ele diz que ao final da vida era “predominantemente amor”.
“Já que, de acordo comigo, sua vida será um processo gradual de tornar-se mais bondoso e amoroso: apresse-se. Corra. Comece agora. Há uma confusão em cada um de nós, uma doença, sério: egoísmo. Mas há também uma cura. Então, seja bom e proativo e mesmo de certa forma desesperadamente paciente em sua própria busca — procure os remédios anti-egoísmo mais eficazes, energicamente, pelo resto da sua vida.
Faça todo o resto, as coisas ambiciosas – viajar, ficar rico, famoso, inove, lidere, apaixone-se, faça e perca fortunas, nade em rios selvagens na floresta (depois de ter checado se não tem merda de macaco) — mas enquanto faz tudo isso, o quanto puder, erre na direção da bondade. Faça coisas que o inclinem pelas grandes questões, e evite as coisas que possam reduzi-lo e torná-lo trivial. Essa parte luminosa de você que existe além da personalidade — sua alma, se assim preferir — é tão brilhante quanto qualquer outra que já existiu. Tão brilhante quanto Shakespeare, brilhante como Gandhi, brilhante como a Madre Teresa. Limpe tudo que o mantém separado desse lugar secreto e luminoso. Acredite, ele existe, conheça-o, nutra-o, compartilhe seus frutos incansavelmente.”
Cultivar desde agora, pouco a pouco, um certo grau de sabedoria e abertura. A chave está na palavra “gradualmente”. Fazer crescer até que esse espaço aberto seja tão grande que caiba uma montanha de bondade.
É bonito ver uma pessoa que não tem receio de mirar em seres como Shakespeare ou a Madre Teresa. Almejar ser tão grande quanto os grandes, não em habilidade profissional ou riqueza financeira, mas em potencial humano e coragem. A mera ideia é ousada, radical.
Isso, sim, é ser ambicioso.
Atualmente, meu ideal é ser como a Lama Lena. Língua afiada, uma grande contadora de histórias, uma verdadeira bruxa no melhor sentido da palavra. Um poço de generosidade, compaixão e inteligência. Em todas as oportunidades, digo que um dia quero ser igual a ela.
Ou, quem sabe, uma versão vida real de um Gandalf, andando por aí, visitando amigos, relembrando as aventuras do passado, animando as festas dos hobbits.
Talvez demore, espero ter tempo. A esperança é conseguir dar um pequeno passo todos os dias, até que o sonho se realize.
É como o velho Saunders diz:
“É um pouco fácil de dizer, talvez, e certamente difícil de implementar, mas eu diria, como um objetivo de vida, você não deveria fazer nada menos do que tentar ser mais bondoso.”
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envelhecer não é fácil, mas a alternativa tampouco é viável... se os cabelos brancos são inevitáveis, melhor buscar o caminho mais suave de lidar com eles.
Amei esse texto! "Não me tornar um velho amargo está no topo das minhas prioridades", também penso assim. Eu gosto da ideia budista (de outras filosofias também) que a bondade e a generosidade já estão na gente. Não precisamos aprender a ser bons, mas sim, aprender a superar tudo que nos faz deixar de agir com bondade. O que você acha?