Recentemente, passei pela experiência de me lesionar, o que me afastou de qualquer atividade fisicamente demandante por algumas semanas. Como se não bastasse, me tirou também atividades que exijam sentar por longas horas, que é a postura básica de quase tudo que eu faço, seja por prazer ou por trabalho. De repente, me peguei absurdamente limitado.
Sobrou um monte de espaços na minha agenda e eu não conseguia preenchê-la com nada que fosse significativo. Não conseguia escrever, não podia enfiar a cabeça em trabalho. Até jogar Zelda estava chato.
A verdade é que eu estava consumido por tédio.
Quando visualizamos o tédio, é comum que a imagem seja nessa linha. Você acorda, toma banho, escova os dentes, se arruma, vai pro trabalho, resolve os problemas, volta pra casa, come, lava louça, cuida das crianças, do pet, das plantas, ouve o parceiro, vê um filme, uma série, lê um livro, sente o corpo pesar e dorme. No outro dia, repete.
Ou seja, eventos similares, um após o outro, dia após dia.
É comum definirmos o tédio por meio de palavras como rotina, repetição, chatice, etc.
Mas não importa o quanto a sua vida seja recheada de novidades, viagens e compras. Eventualmente, tudo o que torna a sua rotina dinâmica, vibrante e invejável vira parte de uma terça-feira comum. Mesmo aquilo que você um dia amou pode se tornar uma coisa como qualquer outra.
Eventualmente, toda a alegria e excitação dá lugar a esse sentimento, quando até o que divertia vira o padrão e, com isso, deixa de causar aquele impulso de interesse que tanto nos move.
É como se estivéssemos presos num ciclo, buscando algo que nos interesse e, assim que aquilo para de nos movimentar, abandonamos em busca de outra fagulha.
O tédio é um estado que, pra muita gente, é insuportável — pra mim também é. A nossa cultura é extremamente baseada na ideia de que não deveríamos dar espaço para que ele apareça.
Quando ele começa a surgir, é como se fôssemos obrigados a fazer alguma coisa, como quem tem uma aranha peçonhenta andando pela pele.
Eu estava nesse ponto. Desesperado por algo que pudesse me tirar daquele estado.
Foi quando percebi que, talvez, eu não precisasse fugir dessa coceira.
O sentimento de tédio surge da experiência de perceber a ausência de estímulo. Como somos apegados ao extremo a tudo que nos causa estímulo, quando nos deparamos com um momento onde nada impulsiona nossa energia, nós temos um mini surto.
O fato é que como corremos o mais rápido possível para a próxima oscilação que vai impulsionar nossa energia, não conhecemos bem esse lugar. A resposta natural é ansiedade e medo sempre que nos deparamos com ele.
Talvez, seja uma possibilidade olhar para o tédio não como esse monstro a se fugir, mas como um amigo que nos aponta o medo que temos desse "espaço no meio".
Eu me peguei pensando na imagem de uma criança na praia, construindo castelos de areia. Quando ela faz isso, ela está criando um objeto cognitivo que vai entretê-la. E quando seu castelo é destruído, seja pelo mar ou pela bola de alguém, ela chora sentindo tanto desespero quanto eu sentiria se fosse checar meu saldo bancário e percebesse que não tem mais nada lá. Se você já passou por alguma interrupção abrupta — um término ou demissão, por exemplo —, sabe que existe esse momento de choque quando a pessoa percebe o vazio. Isso só acontece porque ela espera que aquele algo esteja lá. Ela precisa esperar algo ali pra poder sentir esse vazio. Mas se ela não espera que algo esteja ali, o choque não acontece.
O tédio é como uma versão menos abrupta disso.
Nós temos esse tipo de ignorância que é bem difícil de desfazer. Normalmente, só somos capazes de perceber o que está presente. Nós não cognizamos a ausência de algo, exceto pela experiência da falta. Quando olhamos para a falta em relação a algo que esperávamos estar lá, aí sim, a enxergamos. Mas se formos capazes de olhar pra essa ausência sem esperar/ansiar/querer/desejar que algo esteja ali, a gente não sofre.
É similar ao fato de que simplesmente não sofremos por algo que não conhecemos ou nunca ouvimos falar.
Um outro aspecto curioso é que essa experiência de "presença" de fenômeno não é o estado básico das coisas. Para acontecer algo é necessário uma criação, uma oscilação, quase um milagre.
Mas quando a gente retorna ao estado de vazio, à "não-existência", não há nada a temer porque isso é como é, como sempre foi. O castelo de areia nunca foi nada além de areia.
Esse momento de olhar "pro meio", quando você nota que não tem algo estimulante acontecendo é o que deveríamos considerar o natural, o padrão. Estranho é acontecer tudo que acontece, ter tanto estímulo ao ponto de ficar com a mente exausta ao final do dia, ser tomado por ansiedade e ter crise de pânico.
Quando o tédio começa a doer e vamos deslizando em direção à aflição, estamos apenas em um estado de esquecimento. Não estamos prestando atenção, como quem olha para o dedo quando alguém aponta para o céu.
O lance é continuar vendo a areia enquanto montamos o castelinho. Quando conseguimos repousar nesse olhar, então, percebemos que podemos chamar qualquer coisa de milagre. Mesmo acordar, ir pro trabalho, comer, cuidar das plantas, etc. Nós nos reconectamos com as coisas.
E, assim, sem comprar, sem comer, sem transar, podemos sair do tédio. Simplesmente porque tédio não é algo lá fora, algo que temos de consertar, mas apenas uma forma de ver.
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Dias complicados por aqui com a lesão e outras demandas da vida acabaram me fazendo atrasar a newsletter essa semana. Mas a boa notícia é que já está no fim. ;)
Algumas pessoas comentaram que gostaram do formato curto da última newsletter, então, vou aproveitar os inconvenientes dos últimos dias para seguir assim por enquanto.
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A manha é transformar o tédio em um "não tédio", sabendo aproveitar esses momentos também hahaha. Adorei o texto.
O tédio também faz parte da vida! Saber desfruta-lo é uma delícia.