Da mesma forma como julgamos se algo é digno da nossa atenção em questão de milissegundos, fazemos o mesmo julgamento sobre nós mesmos. Nossa vida hoje é tão moldada pelos algoritmos do entretenimento que o hábito nos faz trazer essa lógica para todos os lugares onde ela não deveria estar.
Eu faço o possível pra me posicionar em oposição a essa cultura, mas por mais que me esforce, também acabo com o cacoete de me movimentar desse jeito.
Tenho um exemplo recente.
Eu estava a semana inteira tentando escrever um artigo sobre um tema que eu deveria conseguir facilmente. Afinal, sou eu, o-cara-criativo-e-profundo-que-fala-das-pequenas-coisas-de-um-jeito-quase-poético-cheio-de-insights-que-as-pessoas-podem-usar-pra-melhorar-suas-vidas.
Mas... nada funcionava.
De repente, veio aquele instante quando alguma coisa se rompe e solta. Percebi o movimento e mudei completamente o tema para falar sobre o que estava me fascinando naquele momento: Zelda. O resultado foi um calhamaço de 2500 palavras repleto de referências que cultivei ao longo de anos de hiperfoco, em contraste com dois parágrafos horríveis que eu demorei quase uma semana pra escrever.
Enquanto estava escrevendo o texto sofrido, por mais que eu tenha como prática buscar conscientemente um lugar “puro” pra escrever, a força do impulso de agradar uma audiência estava ali, assoprando no meu ouvido, dizendo o que seria mais interessante para as pessoas, mais condizente com o que eu gosto de projetar.
Depois de muito apagar, reescrever e tentar editar, notei em um certo ponto que aquele que escrevia estava se esforçando demais. A máscara que eu achava que precisava sustentar pra manter a consistência de uma proposta e performar segundo uma certa expectativa estava mostrando seu peso.
Qualquer pessoa que já tenha tentado manter um cronograma criativo deve se identificar com isso. Em algum momento, você se depara com a sensação de que as boas ideias tiraram férias e o banco de reserva que entrou pra jogo não chega nem perto de dar conta do recado.
A frase que sai da boca nesse momento é: “eu não tenho nenhuma ideia”. Porém, não é como se a mente estivesse de fato vazia. A produção de pensamentos, opiniões, atitudes e emoções continua sua correnteza infinita. O natural a se fazer seria escrever sobre isso, porém, não é o que acontece.
No fundo, você não acha que o que você pensa é interessante. Na verdade, acha que seria melhor ter outros pensamentos. Talvez pensamentos mais profundos, mais criativos, mais admiráveis. Mas não esses que estão saltitando agora. A questão é que é complicado ver depositado na tela isso que você realmente é.
A solução que vem é o atalho dos desesperados: fingir. Você, então, abre o Google, começa a fuçar as redes sociais, vai assistir vídeos no Youtube, abre livros, coloca música pra se inspirar e melhorar a concentração… arma toda a cena. Começa a garimpar as palavras que vão dar a forma pretendida ao seu texto e tenta roubar a potência das ideias que vai encontrando. Mas no fundo, você sabe que falta a convicção. Mesmo quando não admite, você sente.
Com o tempo, é natural que fique cada vez mais difícil sustentar a máscara. Não para os outros, mas para si próprio. Mais cedo do que pensa, a pilha acaba e você para.
É muito difícil ser consistente mentindo pra si mesmo.
Escrever como quem gostaríamos de ser e não como quem efetivamente somos não é um problema em si mesmo. Qualquer um pode escrever como quiser e se é isso que você tem no momento, vá em frente. Até acho que ótimos textos saem dessa forma.
Inclusive, se você é iniciante, esse é o caminho mais curto para começar a escrever. Ninguém sai de um ovo cheio de convicções e pensamentos relevantes de verdade. O mais comum é a gente se inspirar em alguém e copiar ao máximo.
No entanto, com o tempo, essa tentativa de sustentar uma imagem acaba se tornando um peso cada vez maior. À medida que a superficialidade da aparência vai sendo desafiada pela necessidade de renovar os temas e encontrar novas camadas para descrever, a fonte seca.
É como receber uma visita. Da primeira vez, a gente arruma a casa inteira, deixa tudo cheiroso e organizado, vai buscar água, prepara um almoço.
Mas quanto mais a pessoa se torna presente, fica mais complicado manter essa pompa. Caso você tente sustentar por tempo demais a pose, a presença dela vai pesando, então, vai aparecendo o cansaço, você fica querendo que a visita vá embora. Num extremo, você passa até a odiar a pessoa.
Na escrita ocorre algo parecido. Não dá pra escrever com consistência como se estivesse com visita em casa.
É claro que sempre vai existir um processo. Alguns textos são mais fáceis que outros, não é como se não fosse ser difícil em algum nível. A questão é que não precisa ser pesado demais.
Não vejo muita gente comentando sobre esse obstáculo. Muitas vezes, as pessoas acham que têm um problema de técnica, mas na verdade, o problema é apenas de falta de sinceridade. O ato criativo vem pesado porque existe uma tentativa de escrever como se fosse outra pessoa, esse alguém ideal que elas gostariam de ser.
Aqui, eu falo sobre escrita, mas podemos transpor essa ideia pra muitos outros âmbitos da nossa vida. Quantas e quantas vezes a gente não deixa de fazer algo com medo de mostrar a verdade sobre quem somos?
Fugimos da aula de dança pra ninguém perceber nossa falta de molejo. Fugimos do treino da academia porque não queremos ser o magricelo carregando peso de frango. Fugimos da aula de inglês temos vergonha de falar com sotaque. Uma fuga após a outra, ficamos cada vez menores, recolhidos ali no cantinho.
Mas não há nada do que se envergonhar, de verdade.
Desenvolver sinceridade não é algo fácil. Não vem de imediato, é um processo de abertura constante que pode ser entendido como um compromisso pra vida inteira. Demanda bastante e eu entendo quem decide não entrar nessa. Em muitos aspectos, é viver a vida no hard. Uma rejeição vivendo desse modo recai como uma rejeição à alma, ao seu melhor, a tudo que você podia dar.
Porém, à medida que você vai ficando confortável nesse lugar e continua produzindo, pode perceber que alguma coisa também muda por dentro, evolui constantemente, assim como sua capacidade de escrever e articular o que pensa e sente.
Quando os velhos pensamentos, opiniões e comportamentos param de fazer sentido, talvez você tenha que adotar um caminho, lidar com o dilema. Vai ser essa nova pessoa ou sustentar o espantalho do que um dia você foi?
Eu sou da opinião de que a melhor coisa que pode acontecer é você perceber que não é exatamente quem aspirava ser.
Sim, com certeza, confrontar essa ilusão causa uma dor que nenhuma palavra expressa à altura. É aquilo de que mais fugimos, todos os dias.
Porém, é melhor ficar com essa dor do que persistir em um lugar de falsidade estéril.
E, vamos combinar… se você não consegue ser autêntico nem sozinho em uma sala com uma tela em branco, vai ser autêntico com quem?
Aparência e realidade
Essa é uma animação sobre a aparência e o nosso mundo interno que pode ser uma ponte pra uma série de reflexões. Que tal compartilhar comigo nos comentários o que ela trouxe pra você?
Um momento de análise musical cabeçuda
Preciso tirar isso de dentro de mim: eu sou um rato de teoria musical. Especialmente, quando combinamos isso com análises que não ganham muito carinho no cânone da música ocidental, como é o caso de trilhas sonoras de games.
A real é que eu amo entender como as músicas são construídas e de qual forma a elas constroem clima.
Esse vídeo é uma dessas análises, utilizando como assunto um game que não faz tanto parte da minha paisagem, mas que aprendi a apreciar recentemente: Diablo II. Eu tenho uma tendência a preferir games japoneses coloridos e reconfortantes, mas Diablo tem seu charme, não vou negar.
A análise do 8-bit music theory é sempre fascinante. É tão bem-feito que muitas vezes eu não entendo muita coisa, mas adoro seguir o percurso com ele. Então, aí vai a recomendação. Espero que você se divirta também.
A mix que vai te relaxar durante o dia
Se você gosta de música instrumental com clima emocional e relaxante com uma pegada japonesa, essa é a sua trilha de hoje. Boa semana!
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Estava precisando desse texto e nem sabia. Vi a notificação no e-mail, deixei pra depois, e cá estou eu: sentindo na pele o sentimento. Faço mestrado e a academia cobra demais essa produtividade...
Poderia escrever várias coisas mas só consigo dizer que adorei descobrir esse seu texto, tá demais! Passo por isso algumas vezes com a minha newsletter, e na hora que eu me escuto de fato, flui demais!