Venho pensando bastante em sorvete.
Todos nós temos fixação por diferentes tipos de sorvete. Chocolate, flocos, cupuaçu, maracujá, milho verde, creme, coco, avelã… Eu não sou nenhum especialista, mas na sorveteria da pracinha aqui de casa tem vários desses e muitos outros. Tem até uns que imitam uns bombons da Garoto e da Nestlé.
Claro, existe a possibilidade de você não gostar de sorvete. Acredito eu, também podemos dizer que essa é uma forma de fixação. É um movimento, só que ao contrário.
Se quando você gosta de sorvete fica com vontade de agarrar o que puder e levar um balde pra casa, não gostar é a aversão, a fuga, o nojo. Você pode gostar muito ou pouco. Também pode não gostar muito ou pouco.
Você pode também gostar muito de um sorvete hoje e enjoar dele depois. Dá pra odiar um sabor hoje e começar a gostar dele amanhã. Nosso gosto não é muito confiável, ele muda o tempo todo. Da mesma forma, a importância que damos a esses gostos varia.
Na infância nós costumamos dar mais valor ao sorvete do que em outras fases da vida. Quando somos pequenos, um sorvete é a melhor coisa que pode nos acontecer. Dependendo da criança, ela pode até fazer um escândalo para tentar garantir aquele sabor docinho gelado na boca.
Uma vez que ela consegue a tão sonhada casquinha, se o sorvete cai e o cachorro que tava ali passando começa a lamber ele no chão, o berreiro se abre e os pobres pais entram em pânico, numa tentativa desesperada de impedir que a praça inteira comece a julgar a cena.
Para a criança, perder o sorvete é o pior acontecimento, na mesma proporção que segundos antes era a maior alegria do universo.
Quando crescemos, o sorvete muda um pouco. A gente quer ganhar cada vez mais sorvete e até acumula muito mais do que consegue consumir. Perder sorvete se torna intolerável. Há quem queira que o sorvete teça elogios e quem fique muito triste quando ele não diz nem uma palavrinha de incentivo. Pior, há quem perca totalmente a cabeça quando ouve uma crítica do seu sorvete favorito. Em última instância, o sorvete precisa dar prazer, atender nossas necessidades ou fugimos para a próxima sorveteria o mais rápido possível.
Nossa forma de apreciar e de sofrer pelo sorvete vai ganhando mais nuances. É até bonitinho.
As histórias ficam mais complexas, cheias de reviravoltas sobre como nós tentamos manter o sorvete em cima da casquinha, mas eventualmente, bateu um vento e ele não só começou a pingar como manchou a nossa melhor calça.
Eu lembro de uma vez que me apaixonei por um sorvete logo na primeira lambida. Fiquei absolutamente fixado, dormia e sonhava com o sorvete. Não parava quieto.
Era o melhor sabor que eu já tinha provado na vida. Perfeito em todos os sentidos. Doce, levemente ácido, mas com um retrogosto curto que te conduz à próxima lambida. Complexo. Eu só conseguia pensar em quando seria a próxima vez que teria aquele sorvete de novo.
De repente, me peguei incomodado por não conseguir ficar em paz. Como pode um sorvete me tirar do sério dessa maneira? Eu estava consciente da minha perturbação e fiquei rejeitando a coisa, me debatendo, me punindo, dizendo que eu estava emocionado. O fato de eu ter obtido exatamente o que eu queria me deixou super energizado e ao mesmo tempo com essa sensação de que eu não podia me deixar levar desse jeito, perder a estabilidade, etc. Enfim, virei um poço de noia.
Até que hoje, na minha habitual caminhada pra ir pra praia me exercitar, percebi que eu sou muito habituado a praticar e exercer estabilidade quando as coisas estão difíceis, quando sou privado do que quero. É quase como se eu ficasse até mais confortável e preferisse assim. Faltou sorvete? Tudo bem, eu aguento.
Mas percebi que, de uma certa maneira, desenvolvi um medo de ter meus desejos realizados. A energia que surge quando tenho o que eu quero me arrasta de uma forma com a qual não consigo lidar.
Assim, notei que eu tinha um engano.
Mesmo que eu tivesse todos os sorvetes dos meus sonhos, do jeitinho que eu imaginei, a vida não ficaria mais fácil. Parece que essa é a condição para atingir a paz, a felicidade plena mas, na verdade, as coisas podem até ficar mais difíceis.
Quando o sabor dá match com as expectativas, a gente perde a noção do todo. Imagina um javali procurando comida na floresta. O javali é um animal extremamente atento ao menor barulhinho, é rápido e consegue fugir de praticamente qualquer predador. Mas no momento em que ele encontra comida, começa a fuçar e para de prestar atenção. Fica sujeito à ação de predadores.
No nosso caso, os predadores são as noias que nos atacam em hordas. Você com certeza sabe quais.
Felizmente, a vida não é só sorvete caindo. Tem muito sorvete que a gente toma e consegue curtir aquela casquinha crocante até o final.
Sim, a gente normalmente lembra que precisa se habituar a manter a mente estável e não surtar quando acontece algo que a gente não gosta, mas também é importante aprender a não perder o equilíbrio quando temos aquele sorvete que a gente quer muito.
Da minha forma tosca, acho que entendi porque em religiões como o budismo existe o caminho monástico, o ascetismo, os votos, etc. Minha aposta é que de uma certa maneira, essa é a forma menos arriscada de lidar com o descontrole das fixações. Pela falta é possível desenvolver a estabilidade sem ser tão seduzido. Você lida com seu desejo por sorvete sem dar tanta força a ele. Em um certo momento você perde o cacoete.
Como aqui acredito que não tem nenhum monge, meio que não adianta só bancar o asceta e rejeitar a parte boa do sorvete. Eventualmente a gente vai ter que aprender a lidar com o lado bom também, relaxar em meio ao prazer, sem agarrar, sem ficar chapado de paixão.
A gente vai ter que aprender a rir quando o sorvete cai e mancha a roupa. Mas também vai ter que ficar tranquilo quando a vontade de tomar sorvete aparecer no meio da tarde. A gente simplesmente levanta e vai até a sorveteria mais próxima. Sem se fixar, mas também sem rejeitar. Sem puxar, mas também sem empurrar.
E mesmo que você exagere e acabe tendo uma indigestão, você sabe que foi porque se deixou levar. Tudo bem, na próxima você tenta de novo sem ficar bancando o traumatizado. A culpa não é do sorvete.
Esse final de semana eu achei o sorvete dos meus sonhos. Talvez ele caia. Talvez não.
Mas tamo aí.
Recado a Adolf é surpreendente
Osamu Tezuka é tido como o deus do mangá. Ele criou as bases pra toda uma indústria que existe atualmente no Japão. É fácil a gente ouvir o nome dele e tomar como uma espécie de relíquia do tempo, mas a verdade é que as obras falam por si só até hoje. Comprei Recado a Adolf e é impressionante a capacidade dele de conduzir uma história intrigante e cheia de reviravoltas sem deixar de passar uma baita mensagem pacifista, antinazista e antifacista. Coisa que anda pra lá de atual.
O quanto baste
Esse texto da
está uma delícia.Diz ela:
Tudo que eu queria era forrar uma mesa grande e farta para você, para nós, para essas pessoas que tiveram suas certezas movidas de lugar.
Vai lá e puxa sua cadeira.
Na vitrola do Luri: The Lemon Twigs
Andei perseguindo o repertório dos Beatles, então, estou imerso nessa sonoridade meio Beach Boys, meio pop rock do começo dos anos 70. Agora, me pego completamente obcecado por essa banda, chamada The Lemon Twigs. Aqui vai uma amostra grátis, mas vale procurar mais. Recomendadíssimo.
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Então, para me ver feliz e contribuir com a existência e crescimento do Puxadinho, você já sabe o caminho:
Meu deus eu tô muito numa situação aí de sorvete. Esse texto bateu!
Aaah, esses sorvetes…às vezes quando a gente dá sorte, aparecem naquelas taças de vidro grosso com direito à confete e cerejas… obrigada pela recomendação :)