No último final de semana, acabei ficando em casa. Só, somente só. Nenhuma obrigação, nenhum compromisso, nenhum trabalho pra terminar. Nada.
É raro que eu consiga esse tipo de espaço. Apesar de alardear pelos quatro ventos as delícias do ócio e disseminar a palavra da agenda vazia, ficar realmente desocupado é um desafio pra mim também.
Com o espaço que se abriu, naturalmente veio a vontade de pegar a guitarra. Meu amplificador estava com defeito, precisei trocar as válvulas, mas duas semanas depois é a primeira vez que realmente consigo dedicar tempo ao instrumento, a sentir os acordes ressoando no corpo da guitarra e no meu também.
Quando me dei conta, já estava organizando ideias, colocando palavras no papel. Sempre que o espaço se abre, vem em mim a vontade de criar. A energia começou a fluir. O sentimento vem quente, como se o corpo se preenchesse de um líquido fosforescente e borbulhante.
Comecei a cantar baixinho, sussurrando as notas. Fiz isso por horas e horas, até que comecei a sentir o cansaço, as pregas vocais secando e uma leve dor. Hora de parar.
Sussurrar é péssimo, pra quem não sabe. É pior do que gritar, faz muito mal pra voz. Mas é um hábito que adquiri porque na minha casa as pessoas não lidavam bem quando eu começava a cantar. Então, aprendi a compor cantando o mais baixo que posso, tocando e cantando com o mínimo possível de emissão.
De repente, me peguei fazendo isso sozinho em casa e ri.
Não fazia o menor sentido. Não faz. Mas é um hábito. Quando eu começo a cantar no volume normal durante a composição, eu me reprimo. Fico envergonhado, acho que estou incomodando algum ser imaginário.
Hoje, eu achei que escreveria e que traria uma história de superação, mas vamos lidar com a verdade. Eu até tentei soltar a voz pra compor, sem sucesso. Não era confortável. Pra citar o ditado, a boca ficou torta do hábito do cachimbo.
Quer eu queira ou não, quer isso seja bom ou não pra minha performance vocal, esse pequeno cacoete é uma parte da minha história. Sim, eu provavelmente preciso me reeducar aos poucos pra não machucar minha voz, mas não pra satisfazer uma narrativa digna de compartilhar nas redes sociais. De uma certa maneira, isso seria mais uma vez me mudar para adequar.
A vida inteira eu forcei um certo comportamento pra ser aceito nos círculos onde eu me inseria. O mais comum era me esforçar para ser mais falante, escondendo a minha introspecção. Criativamente, eu comecei a cantar, compor e escrever de um jeito x e não de y porque era assim que supostamente funcionava — ou porque era o que pedia uma linha editorial.
Na escola, na faculdade, no trabalho, na família. Em praticamente todas as esferas da nossa vida, evitamos ser notados como “diferentes”, inadequados, esquisitos. A gente se habitua a se moldar pra satisfazer aos olhares dos outros, com medo das inúmeras repressões, sutis e grosseiras, que as pessoas perpetuam umas com as outras.
A gente faz o que pode pra se encaixar. Aprende as regras de conduta, de vestimenta, de fala. Mas quando estamos criando, é bem melhor fazer o que vem naturalmente, o que sai rasgando de dentro. Não o que é certinho, adequado. Deixa o discurso ensaiado pro jantar com a família.
Lidando com o nosso lado meio estranho, com o que escondemos e só falamos para aquele nosso amigo mais íntimo, provavelmente vamos dar vazão ao que nos torna únicos, ao que realmente temos a oferecer.
Conheço muitas pessoas que só realizaram seus verdadeiros trabalhos quando começaram a oferecer as exatas coisas que os outros diziam ser inúteis, que não tinham espaço, que não iam dar certo porque ninguém fazia aquilo.
Pelo que observo, quanto mais abandonamos a pretensão neurótica de agradar e ser reconhecidos, mais leves e criativos podemos seguir com as nossas vidas. Quando trazemos esse tipo de espaço mental que abraça a possibilidade de não sermos aceitos, acabamos encontrando aqueles que realmente vão nos aceitar. A nossa tribo.
Ao contrário do que prega a nossa cultura obsessiva por consertar e empacotar, em geral, a gente não precisa ornar nada. Somos suficientes exatamente como somos. Podemos cantar baixo ou alto, tocar lento ou rápido, escrever no escuro ou pela manhã. Falar de cozinha, de esporte, de dinheiro ou de sexo.
O que realmente importa perfura a forma. É a autenticidade, a tal da verdade. Assim, podemos efetivamente conectar com quem vai se beneficiar do microcosmo que temos pra oferecer.
É por isso que, muito provavelmente, o nosso melhor não está nas dicas para aumentar o engajamento que se proliferam por aí.
Quando penso nisso, sinto que tem um medo básico muito potente que norteia nossa cultura. Pode reparar, somos bombardeados diariamente pela ideia de que tudo é imperfeito e precisa ser corrigido, padronizado, apressado.
A visão de respeito, amor e entendimento quase nunca nos atravessa. Não nos relacionamos sob a ótica da reverência, da paciência, de nos rendermos ao que as experiências pedem e proporcionam. Existe essa neurose de que as coisas que tem que se dobrar e deixamos isso transbordar e contaminar tudo.
Quando a gente menos espera, está olhando no espelho e transpondo esse cacoete pra pessoa no reflexo.
Sei bem como é.
Tenho buscado, aos poucos e na medida do possível, aceitar meu jeito meio esquisito, meio maluco. É um processo.
Mas o que não é?
Preparando experiências longas
Um dos discursos que mais me intrigam é o de que as pessoas não têm mais atenção pra nada e que se você preparar algo que tome tempo, simplesmente ninguém vai ver ou se importar.
Bem, talvez seja verdade pra maioria, mas não consigo acreditar que seja pra todos. Desafiando essa noção, ao invés de lançar singles a cada um ou dois meses, como vem sendo a prática, decidi lançar um álbum completo. Oito músicas pra quem quiser sentar e se envolver com algo que tenha começo, meio e fim, pensado pra ser uma experiência mais longa.
O Espaço Interior é um disco pra colocar na manhã de domingo enquanto você toma café, pra deixar rolando quando recebe uma visita ou até sozinho, enquanto lembra de alguém que gosta.
Quem quiser ouvir, é só clicar aqui.
Hoje saiu mais um vídeo ao vivo tocando uma música do Espaço Interior com banda. Dessa vez foi Retorno de Saturno.
Esse trabalho ao vivo também foi feito com muito amor e recebeu o apoio da Secult-ES por meio do Funcultura.
Passando o chapéu
Escrever, cantar, tocar, gravar, fazer arte… tudo isso é um trabalhão.
Se você chegou até aqui, considere contribuir com meu trabalho enviando um PIX simbólico de qualquer valor (qualquer valor mesmo!) para: luri@luri.me.
Se preferir usar cartão ou Paypal, também pode me pagar um cafezinho no Ko-Fi.
O Ko-Fi tem a opção de fazer uma contribuição regular mensal. Essa seria a contribuição ideal, se você me permitir escolher. ;)
Agradeço de coração por todo o apoio!
Um abraço apertado,
Luri
Tenho pra mim que a liberdade de ser quem somos nos condena a solidão, mas é uma solidão temporária, suficiente pro tal do autoconhecimento, autoaceitação. Depois a magia acontece, percebemos que não somos tão redondos quando achamos que somos e os outros nem tão quadrados que não possam comportar um círculo. Tudo acaba se encaixando, ou sendo mais aceito, mas claro, tem que se estabelecer a dimensão dos círculos e quadrados para o encaixe e aí começamos a selecionar melhor o que nos cabe.
é engraçado perceber que quanto mais tentamos nos aproximar de algo, mais nos distanciamos de quem somos. achei lindo o verso "cansei de carregar dentro de mim o mundo, abraço o menino que colore tudo". que consigamos olhar com mais carinho pra nossa criança interior, que não precisa se encaixar, mas sentir amor e continuar caminhando com a fé de reencontros em um constante ir e vir :') tô nesse período de retorno de saturno e me identifiquei muito. obrigada por essa partilha que aqueceu o coração!