Quando era criança, eu desenhava bastante. Todos os dias pegava alguma coisa e começava a projetá-la no papel.
Eu me divertia muito olhando vez após vez pra mesma imagem dos Cavaleiros do Zodíaco ou do Street Fighter, tentando reproduzir as proporções certas, as luzes e sombras, as cores, as perspectivas.
Acabei me acostumando a fazer isso e o hábito foi se expandindo pra outros objetos também. Prédios, árvores, flores, canecas, fotos de pessoas que eu gostava… eu me instigava com isso. Era mágico dar um zoom mental no que tinha ao meu redor.
No entanto, com o tempo, foi um hábito que perdi, especialmente quando comecei a me interessar mais por escrita e música.
Anos depois, quando já morava em São Paulo, conheci o Bruno Passos, um pintor de mão cheia e uma pessoa com uma baita personalidade. Em um período no qual decidi voltar a colocar as coisas no papel, o Bruno viu um dos meus desenhos e se ofereceu pra me ajudar. Obviamente, como não sou bobo, topei.
De repente, comecei a frequentar a casa do Bruno semanalmente. Sempre nos reuníamos um tempinho e ele me passava exercícios.
A coisa girou ao redor, basicamente, de pegar um rosto conhecido e desenhá-lo. Na primeira semana, o Bruno me disse logo de cara que eu não estava efetivamente desenhando o que eu estava vendo.
Eu estava colocando no papel projeções de como seria um rosto humano e adaptando essas ideias pra se assimilarem ao rosto que eu tinha pego pra desenhar. "Isso aqui parece um cartoon do rosto dele", Bruno me disse com a típica voz aguda e o sotaque forte do interior de São Paulo. A observação foi precisa.
Depois, ele me mandou refazer o mesmo rosto/desenho várias e várias vezes. E, sempre, me mostrando algum detalhe que eu tinha omitido. Assim, eu fui, de fato, enxergando nuances que nunca teria percebido sozinho. Eu passava horas e horas olhando pro mesmo rosto, descobrindo novos detalhes e melhorando o retrato que eu era capaz de fazer.
Essa experiência me fez pensar.
Vivemos uma época na qual uma boa parte do nosso testemunho do mundo é feito por intermédio de telas. Seja pelo celular, pelo notebook ou TV, nos habituamos a ter a luz projetada em nossos olhos e a filtrar a maneira como vemos por dentro daquele enquadramento.
Estamos sendo condicionados por esses dispositivos e, principalmente, pelas redes sociais a olhar pra tudo de maneira apressada, superficial. A cada dia que passa, treinamos nossa atenção para ser ainda mais rasa, pulando até mesmo vídeos de 15 segundos antes que terminem, com a pressa descuidada de quem diz "Ah, já entendi, pula".
O efeito disso é uma espécie de crise de interesse, um déficit de satisfação, além de uma série de interpretações absurdas da realidade quando completamos o que não conseguimos entender com as loucuras que temos na cabeça.
Quando nos deparamos, então, com algo que nos demande mais do que aquele minutinho, é como se estivéssemos há anos sem nos exercitar e, de repente, decidíssemos carregar mais peso. Não estamos preparados para o mergulho necessário.
Não que seja amostra estatística, mas tenho ouvido muitos amigos relatando não conseguirem mais abrir livros e passar mais do que 2 ou 3 minutos lendo. Minha bolha anda esgotada, desatenta e se esforçando pra tirar de onde não tem.
A pressa que a lógica de mercado nos impõe no trabalho e no consumo transborda até pra esses momentos de lazer. A superficialidade carente e demandante se torna uma forma de se posicionar diante de tudo. Vamos nos acostumando a olhar tão rápido que os detalhes se perdem e nem notamos como nossa forma de ver vai ficando cada vez mais turva, com menos nuances.
Mas se paramos um minutinho pra olhar bem, tudo que existe no nosso mundo é ou tem o potencial de se tornar uma ciência por si só. O café que você toma, as folhas das árvores, a madeira que compõe a porta da sua casa... quando nos debruçamos, então, sobre os produtos culturais que nos cercam, é ainda mais fácil perceber.
Quando paramos pra dar zoom, percebemos como há uma riqueza infinita de detalhes em absolutamente qualquer coisa. É como ver cordilheiras nas rachaduras de uma caneca velha. Elas estão lá.
Muitas vezes não sabemos, mas uma música que ouvimos pode ter dezenas de horas de trabalho, se contarmos todas as pessoas que param para se dedicar a uma parte da obra. Há pesquisa, imersão criativa, escrita, arranjo... cada pedacinho desses tem uma razão de ser que deixamos passar quando só ouvimos enquanto caminhamos pro nosso próximo compromisso.
Um filme, então, é capaz de levar a carga de trabalho para as milhares de horas facilmente. Nada é à toa, tudo é milimetricamente calculado.
Mas não notamos.
É raro que a gente pegue uma obra, seja música, filme, série ou livro e faça uma apreciação sem distrações, tentando realmente focar, observar os símbolos, o eixo narrativo, o tema, a mensagem mais ampla. Sem direcionamento fica difícil chegar aos significados mais profundos porque não somos nem treinados pra isso.
Eu acredito, de verdade, que interesse, atenção, foco e curiosidade são aspectos treináveis da nossa mente e que trazem benefícios incalculáveis. Grandes artistas cultivam esse olhar. Meditantes também treinam essa sensibilidade diariamente.
Por mais banais que sejam os objetos, alimentos ou produtos culturais, há sempre muito mais a ser visto do que quando só passamos o olho.
Verdadeiramente contemplar, lançar um olhar curioso para os fenômenos mais banais é uma excelente forma de dar colorido à vida. É como voltar a ser criança, enxergando a magia dos fenômenos, se conectando com a realidade e aprendendo a se sintonizar com as formas sutis que estão por todo lugar.
E quem não quer ter novamente a experiência de abertura, energia e brilho que uma criança tem quando olha pro mundo?
Cesta de Compartilhamentos
Quando tudo se desfaz - Sempre que tenho momentos difíceis, as palavras da Pema Chödrön são um refúgio pra mim. Esse livro é uma preciosidade. Eu já comprei, doei e recomprei um monte de vezes.
Trilha sonora imaginária para nosso Drama/Romance - Eu amo o canal Analog Journal. Ele é uma das melhores fontes pra descobrir músicas do mundo inteiro e, em geral, a qualidade é lá em cima. Se você tem um apetite por explorar novos temperos musicais, cola aqui que é garantia de sucesso.
TED Talk do Ethan Hawke sobre dar-se permissão pra ser criativo - Esse ator é incrível e a visão sobre criatividade que ele propõe aqui poderia ser guardada num potinho pra deixar na cozinha, junto aos temperos. Assim, quando você for criar alguma coisa, é só ir lá olhar e colocar essa “pimenta”.
Na Vitrola do Luri: Masayoshi Takanaka
Em um dos primeiros textos do Puxadinho, eu comentei sobre algumas conexões e similaridades entre a música brasileira e japonesa. Desde então, venho mergulhando ainda mais nesse tema, garimpando artistas, estilos e linguagens.
Um desses meus achados mais recentes é Masayoshi Takanaka que, juro pra vocês, merece um artigo só dele. Ele é um guitarrista de fusion e mistura do jazz ao funk, passando pelo city-pop, disco, samba e bossa nova.
O que mais me fascina é como a música dele é complexa, mas também absurdamente solar. É como um dia na praia. A energia é sempre lá no alto, exala positividade e alegria. Nesse aspecto é bem diferente da música ocidental, apaixonada pelas próprias neuroses.
O Takanaka tem esse bom humor que está em tudo, você vê pelas capas dos álbuns, pelo figurino e pelas participações que costumava fazer em programas japoneses de comédia. Muito interessante.
A música que indico aí em cima faz parte de um álbum chamado The Rainbow Goblins, no qual ele se baseou no livro de mesmo nome pra criar uma narrativa instrumental legal além da conta. Eu amo como a atmosfera vai do fusion lúdico ao sinfônico cinematográfico.
O disco inteiro vale a pena, mas “You Can Never Come To This Place" é digna de figurar entre os melhores encerramentos de álbum que eu já ouvi, pau a pau com Dark Side Of The Moon e Abbey Road.
Se gostou da faixa, não deixe de ouvir o álbum inteiro.
Diário de Produção
A última newsletter sobre “Os perigos de ser sequestrado pela sua audiência" saiu totalmente do controle. Chegou tanta gente nova que eu, honestamente, fico até um pouco tímido. Foram quase 20.000 views, mais de 130 compartilhamentos pelo Substack e inúmeros pelo Twitter. A lista de assinantes, literalmente, triplicou de tamanho.
Sou péssimo divulgando minhas coisas e não gosto muito de abrir essas informações sob o risco de parecer orgulhoso — acho que isso é até o efeito de uma boa dose de autossabotagem — mas a realidade é que estou muito feliz que isso aconteceu e queria agradecer e dar as boas vindas a todo mundo que está chegando. Espero que se acomodem bem. ;)
Um ponto importante de avisar é que também sou músico e em breve pretendo lançar um álbum autoral. Venho compartilhando o processo nessa seção da newsletter, o Diário de Produção. Então, vocês vão me ver falando bastante disso até setembro.
Para quem já quiser me acompanhar em outras redes, aqui vai meu Instagram, Twitter e Spotify.
Passando o chapéu
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Um abraço apertado,
Luri
As primeiras frases me fizeram lembrar da criança que fui, exatamente assim, adorando desenhar, principalmente CDZ, atento aos detalhes. Era elogiado pelo talento, mas isso se perdeu com o tempo, outras prioridades, mas fica a sensação de que é necessário revistar esse olhar atento da infância.
Que texto incrível cara, parabéns e obrigado!