Entregue-se à procrastinação
O que uns chamam de distração e perda de tempo pode ser simplesmente a vida acontecendo.
Nota: Semana passada escrevi um dos textos que mais me deram orgulho nos últimos tempos graças à pergunta de um leitor. Pra me ajudar a escrever mais desses, faça uma pergunta aqui sobre escrita, meditação, música, videogames ou qualquer coisa que queira saber.
Há alguns dias, decidi escrever um texto sobre procrastinação. A ideia estava bem clara na minha mente. Eu tinha uma lista de tópicos e um sonho.
Mas, como é bem próprio da vida, fui surpreendido por um irrefreável interesse pelos Beatles que atravessou meus planos. Comecei a pesquisar músicas e montar playlists. De repente, peguei minha guitarra, liguei o amplificador e fui tentando tirar a ferrugem dos dedos e das pregas vocais.
Tal qual adolescente, fiquei trancado no quarto vendo vídeos de aulas de guitarra, pegando músicas dos Beatles que sempre quis mas nunca me dediquei a aprender. Hey Bulldog, Golden Slumbers, Come Together…
Meu texto, coitado, ficou de lado.
Normalmente, eu sentiria uma culpa enorme lidando com isso, como se tivesse desviado do meu propósito, destruído meus próprios planos. Porém, o sentimento vai completamente em outra direção. Depois de passar horas e mais horas calejando meus dedos no instrumento, o coração está energizado, sinto um cansaço satisfeito, contente.
Não consigo deixar de pensar no que pode haver de diferente entre esse momento e os muitos outros que já tive dedicados à procrastinação.
Em meio a essas reflexões, surgiu na minha frente um artigo na BBC, parte de uma série sobre trabalho, feita na pandemia. Ali, o autor cita uma pesquisa feita pela Universidade de Sheffield no Reino Unido, onde foi proposto que a procrastinação é um problema relacionado à gestão de nossas emoções, e não do nosso tempo.
Na visão tradicional sobre procrastinação, podemos dizer que eu não compreendi ao certo quanto tempo levaria para escrever meu texto. Por isso, não prestei atenção às horas que desperdicei tocando guitarra. Caso eu fosse mais organizado e gerenciasse melhor meu tempo, segundo essa lógica, eu pararia de procrastinar e focaria no meu texto.
Já nessa outra perspectiva, proposta na pesquisa feita pela Universidade de Sheffield, a tarefa que eu adiei estava fazendo eu me sentir mal — seja pela dificuldade, por tédio ou medo de falhar — então, para que eu me sinta melhor, resolvi fazer algo diferente, que me traga algum nível de satisfação imediata, como assistir a vídeos ou, no meu caso, tocar um instrumento e ouvir música.
Essa segunda visão faz muito mais sentido pra mim, pois mostra que o impulso da procrastinação não é algo aleatório, feito sem uma lógica por trás.