Era horário de almoço. Eu caminhava de volta pra casa, depois de comer mais feijoada do que gostaria de admitir.
Como sempre, vinha pensando na minha vida, nos meus problemas, em mim e no meu umbigo. Minha companheira, então, notou um casal do outro lado da rua, pedindo comida. Generosa, ela alimentou os dois e passou um tempo oferecendo também companhia, conversando. Entre um assunto e outro, o homem virou pra mim e disse: “acho que o senhor tem mais ou menos o meu tamanho. Será que o senhor não teria uma roupa pra dar pra nós lá na sua casa?”
Era um dia particularmente frio, apesar do sol. O vento não deixava dúvida: seria uma noite gelada. Acho que, um pouco por isso, fiz uma coisa incomum pra mim: fui em casa, reuni o que foi possível e voltei com algumas sacolas pra entregar ao casal.
Eu achei que tinha realizado uma grande ação. Olha só, que gente fina que eu sou. Um exemplo! Mas, no dia seguinte, quando repeti meu ritual do almoço no quilo do bairro, não pude deixar de notar: todos os moradores de rua da região estavam usando minhas roupas.
Olha só, do alto do conforto do meu lar, quentinho e bem alimentado, eu estava me achando o máximo por ter dado algumas peças de roupas que não usava mais. Esse casal, no entanto, que muito bem poderia acumular o que recebeu pra ter um mínimo de conforto, decide repassar quase tudo para quem compartilhava da mesma necessidade.
Aquilo me acendeu por dentro. Que incrível!
Não é comum pensarmos em dar (ou doar). Às vezes, o mero pensamento de ver nossas coisas saindo das nossas mãos é o suficiente pra nos dar calafrios. Entregar algo costuma vir acompanhado desse sentimento de perda, que se dermos o que temos, não vamos ter o suficiente. Em situações de escassez, então, o impulso é apertar ainda mais a mão. Óbvio.
Esse instinto é tão forte que até é utilizado como estratégia de vendas. Na Apple Store, por exemplo, os produtos ficam disponíveis para que você veja, toque e interaja pois uma vez que você os pega, deixá-los de volta na prateleira gera um certo nível de dor.
Nós somos tão assim que mesmo quando tentamos praticar o desapego, pensamos naquilo que está acumulado, que não serve mais, que não gostamos.
Claro que há o seu valor em doar algo que está parado, mas se olharmos com um pouco de atenção, talvez haja um contrassenso nessa prática.
Doar aquilo que não nos fisga não é realmente lidar com o apego. Afinal, se aquele objeto já perdeu o brilho e está ali encostado, significa dizer que o próprio apego a ele já se desvaneceu. Assim, se você se livra dele, não há realmente muito desapego porque o apego em si já se foi há muito tempo.
Claro que é melhor do que nada. Afinal, não deixa de haver um exercício de generosidade, de pensar em quem pode se beneficiar daquilo e isso, em si, é super interessante.
Porém, penso que é possível também ampliar o tamanho da generosidade, realmente testar os limites e ver até onde podemos realmente nos doar e agir de forma menos autocentrada.
Uma das melhores formas é ir contra o impulso do gostar e do desejo de agarrar.
Esse impulso é um dos mais poderosos que temos em nós. A nossa vida inteira temos como base de praticamente todas as nossas ações um eixo de agarrar aquilo do que gostamos e rejeitar aquilo que nos é desinteressante ou do que não gostamos. Isso é praticamente o motor central. É difícil até pensar em algo que façamos, normalmente, que não inclua de alguma forma esse impulso básico.
Todos os dias, somos bombardeados com mil anúncios falando sobre algo que nos falta. Você é abordado, seja metaforicamente ou literalmente, por alguém que diz que a sua televisão pode ser melhor. A sua geladeira pode ser maior. O seu carro pode ser mais bonito.
Somos perseguidos pela crença de que precisamos de mais coisas e que uma vez que tivermos tudo, enfim, seremos felizes.
Assim, mesmo que não estejamos na busca pela melhor televisão, parece que algo dessa mensagem fica em nós e, quando menos esperamos, temos um guarda-roupa entupido de camisetas que não usamos há anos, um rack repleto de games que enjoamos, uma estante cheia de livros que compramos e nem lemos.
E no coração, muitas vezes, sentimos um enorme vazio quanto mais abarrotada está a nossa casa.
Quando retorno pra história que contei aqui em cima, me imagino na mesma situação daquele casal e busco pensar no processo mental pra eles doarem as roupas que acabaram de receber. Vale frisar: uma necessidade imediata em um dia de frio. É inacreditável o tamanho do gesto.
Nesse sentido, livrar-se de um objeto querido ou necessário é um gesto extremamente subversivo, uma rebeldia, uma afronta.
Você pode até testar agora mesmo. Feche os olhos e visualize algo que você gosta muito e pense na possibilidade de dá-lo a alguém, especialmente se esse alguém é desconhecido ou alguém que você não gosta. Dói só de pensar.
Por isso, gosto muito dessa ideia e venho buscando praticar aos poucos, desde que tivesse essa experiência: doar aquilo que eu gosto.
Não um objeto escondido no fundo do guarda-roupa, mas sim aquele que causa as mais doces lembranças. Um presente de alguém querido. Algo que queria muito e foi difícil de conseguir. Não a versão baratinha, não a velha, não a que está pegando poeira, mas sim a bonita, a atraente, a que eu ostentaria com orgulho.
Não precisa ser nada caro. A única regra é que o objeto tenha significado. Quanto mais imantado melhor.
Vale aproveitar a oportunidade pra observar bem essa estrutura do apego, ver como o corpo reage, de que forma a gente acaba se retorcendo pra não fazer isso.
Eu sinto tudo isso só de pensar.
Meu sonho é, quem sabe algum dia, me tornar capaz de doar mais do que objetos. Doar o tempo, doar sabedoria, doar destemor. Ser capaz de ajudar os outros a descobrirem a sua própria coragem, da mesma forma que vejo alguns gigantes que caminham em meio a nós fazendo.
Claro, é um sonho distante, mas qual a graça de sonhar pequeno, né?
Na Vitrola do Luri: Overexposed overcomplicating things
A ideia desse vídeo faz cócegas na minha mente. O cara, não contente em fazer algo super sensível e complicado, que é revelar filmes de forma caseira, decide fazer isso enquanto toca um set como DJ. Muito bom!
Leu até aqui? Deixa um comentário!
A melhor parte de publicar é o contato, conversar e conhecer pessoas. Então, deixa um comentário aqui embaixo pra eu saber que você está aí! :)
Um abraço apertado,
Luri
esse texto me lembrou uma parte do evangelho segundo o espiritismo (e da Bíblia) que gosto muito e também tenho tentado praticar:
"Estando Jesus sentado defronte do gazofilácio, a observar de que modo o povo lançava ali o dinheiro, viu que muitas pessoas ricas o deitavam em abundância. – Nisso, veio também uma pobre viúva que apenas deitou duas pequenas moedas do valor de dez centavos cada uma. – Chamando então seus discípulos, disse-lhes: Em verdade vos digo que esta pobre viúva deu muito mais do que todos os que antes puseram suas dádivas no gazofilácio; – que todos os outros deram do que lhes abunda, ao passo que ela deu do que lhe faz falta, deu mesmo tudo o que tinha para seu sustento." (S. MARCOS, 12:41 a 44; S. LUCAS, 21:1 a 4.)