Da importância de estar em contato com a bondade
Adoecemos quando mergulhamos em aspectos negativos do ser humano, da mesma forma que não conseguimos sobreviver submersos na lama.
Posso afirmar sem exagero que Hayao Miyazaki é um diretor de animação japonês cuja palavra que melhor o define é: gênio.
Muito provavelmente você o conhece mais pela obra do que pelo nome. Se Princesa Mononoke, Viagem de Chihiro, Ponyo ou Meu Vizinho Totoro significam alguma coisa pra você, é graças a ele.
Eu gosto de me considerar uma pessoa criativa. Dedico algumas horas diariamente a trabalhar minhas criações. Escrever, tocar, desenhar e até fotografar. Em geral, quando encontro um bloqueio, entendo que talvez seja necessário quebrar minha linha de raciocínio viciada e tento fazer algo novo.
Foi assim que, por curiosidade e por estar em uma fase de atração pela obra do Hayao Miyazaki e do Studio Ghibli, que decidi assistir o documentário Never Ending Man.
Em síntese, o documentário pega o Miyazaki bem numa época na qual ele anunciou sua aposentadoria. Pouco tempo depois, ele decide, então, aproveitar o tempo livre pra se dedicar aos seus projetos pessoais. Um desses era um curta sobre uma lagarta, cuja ideia ele teve anos antes, mas nunca tirou do papel.
Assim, ele começa seus rascunhos e experimentações até perceber que não consegue passar de um certo trecho, sentindo as limitações da técnica que foi seu refúgio por toda a vida, a animação quadro a quadro feita à mão. Em um certo momento, ele se abre à possibilidade de trabalhar com CGI.
É bem interessante ver como ele se comporta durante a produção, o que chama sua atenção, o que o toca e como ele reage e se dedica ao que faz.
Mas aqui, gostaria de falar de um trecho no qual um grupo de animadores decide mostrar uma animação gerada completamente por inteligência artificial. A cena consistia em um corpo humano deformado que caminhava de maneira monstruosa, como se tivesse saído direto de uma cena de Resident Evil.
A reação do Miyazaki, nesse caso, me chamou uma especial atenção.
"Todas as manhãs eu costumava ver um amigo deficiente. Até mesmo um high five era difícil pra ele. A sua mão ficava estática e eu que tinha que levar a minha até tocar a dele. Eu penso nele e não consigo dizer que gosto disso [que vocês fizeram]. Quem quer que tenha feito isso não reflete sobre a dor. É muito desagradável. Você pode fazer coisas horríveis, se quiser, mas eu não quero ter nada a ver com isso. É um terrível insulto à vida."
Não é difícil compreender a fala.
Miyazaki viveu, ainda que como uma criança, o fim da Segunda Guerra Mundial. Sua mãe morreu de tuberculose após um longo período de 9 anos adoecida. Mas acho que, principalmente, por ser um xintoísta e ambientalista, a reverência que ele possui pela vida e por todas as coisas acaba transbordando todo o seu pensamento.
E é fácil observar. Sua obra é repleta de exemplos de respeito, amor e empatia. Os vizinhos se presenteam, velhinhos brincam com as crianças, as comunidades se ajudam. Mesmo os vilões, se olhar bem, eles raramente morrem ou têm um fim trágico. Miyazaki não resolve seus conflitos pela violência. Não é raro que esses mesmos vilões mudem, cresçam, se transformem e se tornem parte do time dos heróis (ou, no mínimo, manifestem ambivalência quanto aos seus interesses iniciais).
As crenças que permeam o pano de fundo moral da obra do Miyazaki são elevadíssimas, focando em aspectos positivos do ser humano, como quem quer deixar uma mensagem, uma semente.
E isso me traz aos nossos tempos.
Mais do que nunca, estamos soterrados por informação do pior tipo.
O tempo inteiro reforçam o que há de pior nas pessoas e constroem uma realidade na qual a guerra, a fome, o crime e a maldade pura são a regra. Ficamos apavorados, acreditando que devemos nos esconder atrás de muros e câmeras e que a única forma de transitar pelo mundo é enfurnado em uma lata com rodas, separados de qualquer toque da terra ou de outras pessoas.
Não me assusta que estejamos, enquanto sociedade, caindo doentes, depressivos e ansiosos.
Nós somos humanos, não fomos feitos pra ter contato ininterrupto com muita maldade. Adoecemos quando mergulhamos nisso da mesma forma que não conseguimos sobreviver submersos na lama.
Precisamos nos lembrar constantemente do nosso verdadeiro potencial ou somos arrastados pelo tsunami de notícias que reforça o lado perverso do ser humano. Nós não somos isso, ainda que possa parecer quando constantemente repetem essa mensagem.
É importante procurar por beleza, bondade, compaixão e amor. É essencial estarmos em contato com a natureza e reconhecer o equilíbrio, a harmonia expressa na energia que envolve e permeia cada grão de areia, cada folha de árvore, cada pequeno animal. Assim, conseguimos encontrar um tipo de cura que não está ao alcance de nenhum medicamento.
A dor e o sofrimento existem, claro, e não devemos esquecer deles. Porém, precisamos pensar em qual paisagem mental estamos construindo, dia após dia, minuto a minuto, por meio de tudo o que vemos e ouvimos, sob o risco de nos envenenarmos lentamente até esquecermos que também somos capazes de doar, de amar e de nos sacrificar por aquilo que é maior do que nós mesmos.
É importante também gerarmos beleza, espalhá-la pelo mundo para que seja uma expressão dessa grandeza que todos nós temos. Quando damos afeto, cuidamos de um jardim ou cozinhamos algo pra quem amamos, isso também é uma forma de colorir a realidade com tons vibrantes.
Quando falamos do que está na essência, o coração responde. Ele pede por mais, como se estivesse tentando se nutrir de algo que precisa para ser saudável.
Precisamos escrever e falar sobre o que as pessoas do nosso convívio estão fazendo para tornar o mundo melhor, inspirar, emanar outras frequências que não apenas o alarmismo barato pra gerar cliques e vender anúncios.
Do contrário, vamos nos esquecer da verdadeira natureza humana, que é ampla como o céu, infinitamente capaz de obras maravilhosas, feitas para nos conectar e aquecer.
Em tempos como os nossos, talvez precisemos mesmo disso. Mais harmonia, amor, equilíbrio. Que busquemos aquilo que ressoa, preenche e inspira.
Na vitrola do Luri: Fishmans
Continuo apaixonado por música japonesa já há uns bons meses. É praticamente a única coisa que tenho ouvido. Um dos principais fatores se deve à maneira como as músicas seguem uma outra temporalidade.
O Fishmans tem um disco chamado Long Season, por exemplo, que entrega uma performance ininterrupta de ideias musicais que se desdobram por quase quarenta minutos. É um disco pra ser ouvido em um fluxo só, com dedicação completa.
E aqui tem uma performance ao vivo desse disco que é ainda melhor que o original.
Eu não poderia ficar mais hipnotizado pela forma como a narrativa vai se construindo, criando uma espécie de transe enquanto cada novo elemento vai entrando até chegar a um clímax que não posso definir de outra forma a não ser orgástico.
Fiquei curioso sobre a história da banda, pra saber o que mais poderia ouvir e descobri que poucos meses depois dessa performance, Shinji Sato, o vocalista da banda, faleceu.
Ouça Coração no Espaço Interior Ao Vivo
Coração é a música que fecha o meu álbum, Espaço Interior, e foi a primeira que fiz com essa pegada mais de banda completa. Até então, quando o disco era pra ser um EP, minha intenção era fazer tudo e tocar todos os instrumentos.
A ideia não foi muito longe. Logo comecei a esbarrar nas minhas limitações técnicas e psicológicas.
Algo que pouca gente comenta é como o processo criativo pode ser repleto de vozes na sua cabeça, criticando cada pequeno detalhe e atribuindo um valor muito maior a coisas que não têm lá tanta importância. Às vezes, você demora muito mais do que deveria pra dar continuidade ao projeto simplesmente porque está fazendo força contra você mesmo.
E eu estava passando por isso. Meu nível de exigência e cobrança era completamente desmedido.
Por sorte, acabei decidindo incorporar outros músicos ao projeto, o que não só fez ele andar como deu uma vida que, tenho certeza absoluta, eu jamais conseguiria sozinho.
Deixo aqui essa que é a última música dessa série ao vivo pra vocês ouvirem. Espero que gostem. :)
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Luri