A vida cotidiana, muitas vezes, consegue ser um borrão de dias tediosos, correndo o calendário semana a semana, mês a mês. Até que de repente, é janeiro outra vez. Mas embora a rotina se imponha, nós sempre damos um jeito de nos ocupar, de movimentar um brinquedo que nos estimule e nos afaste dele: o tédio.
Estamos constantemente sendo estimulados por notificações, conversas, vídeos curtos, propagandas, séries, videogames e por aí vai. Eu entrei nesse ciclo, como um hamster girando a rodinha e esperando cair um pouco de ração.
Ultimamente não venho sendo o mais criativo dos seres humanos. Falhei a newsletter, fugindo do teclado como quem foge da cruz. E não vou negar, o videogame anda muito interessante. Assim como os stories, os reels, os memes e as séries.
Eu vinha acordando, pegando o celular, passando algumas dezenas de minutos ali e me arrastando pelo resto do dia, com dificuldade de entregar qualquer coisa significativa, seja pro trabalho ou pro Puxadinho.
Às vezes, deixo de fazer o que realmente gostaria para tentar algo que traga uma gratificação mais instantânea. Igual todo mundo, né? E tudo bem.
O problema é que eu vou pesando cada vez mais nas cobranças, o que ao invés de me trazer de volta às palavras, só me afasta ainda mais.
Porém, dessa vez, quando meu carrasco interior foi beber uma água entre um açoite e outro, eu me peguei lembrando que uma das experiências mais marcantes da minha vida envolveu um retiro de meditação. Anos atrás decidi entrar em um retiro que envolvia comer, beber e dormir apenas o estritamente necessário. Além disso, havia a opção de fazer voto de silêncio. Eu fui fundo nisso.
Foram oito dias sem as delícias dos bares e restaurantes da cidade, sem celular, sem conversas e sem qualquer outra atividade que não fosse meditar. Embora isso possa parecer enlouquecedor, o que ficou muito forte como lembrança foi a energia absurda que eu sentia e que me conduziu, em seguida, a um dos períodos mais criativos e focados da minha vida.
Ao me afastar de todo o excesso de estímulo habitual, foi como se a lama voltasse ao fundo do rio e eu conseguisse ver novamente a beleza dos peixes e da vegetação abaixo da água. Aquilo que realmente me importava e que eu evitava fazer passou a ser super interessante! Eu não conseguia não ter mil ideias para textos, músicas e projetos. Estava transbordante.
Isso me trouxe de volta aos meus dias procrastinantes.
O conselho mais comum diante de uma tarefa que você está evitando é o de tentar fazer aquilo se tornar mais interessante. Talvez colocar uma música, uns aromas, transformar em um joguinho (gameficação) ou até brincar com o sistema de recompensas e se premiar com chocolate ou algo nessa linha.
Embora muitas vezes essas estratégias possam funcionar, especialmente no curto prazo, a tendência é que elas não se sustentem por muito tempo.
O ponto é que o mundo já é absurdamente estimulante. Competir com a abundância de estímulos tentando tornar o trabalho criativo mais estimulante pode ser um esforço em vão. Provavelmente, não é mais estímulo que vai nos fazer gravitar em direção à tela em branco.
É claro que, muitas vezes, nosso trabalho precisa de um certo nível de estímulo para que a fagulha se acenda. Mas no contexto de uma vida superestimulada, até para que essa fagulha inicial tenha alguma força, é preciso que exista um contraste para que o estímulo se destaque o suficiente para gerar a motivação de criar.
Aquilo que nos interessa (ou não) é contextual. Vai depender da configuração ao nosso redor. Em uma condição na qual não há entretenimento, qualquer objeto pode se tornar essa fonte de diversão/estímulo/interesse. Por exemplo, sem um videogame ou celular por perto, a bola largada no canto da garagem de repente começa a ficar mais atraente.
Nossa mente procura o objeto mais estimulante disponível. Em uma sala vazia com apenas um livro seria muito improvável que você não procurasse a leitura depois de um certo tempo de tédio.
Seguindo esse raciocínio, dá pra notar que não é necessário modificar o trabalho criativo em si. A tarefa pode permanecer a mesma, mas mudando o ambiente ao redor, podemos transformar a nossa maneira de perceber aquela atividade. Ao tornar todo o resto ainda mais tedioso, o trabalho se torna mais interessante.
A ideia aqui, então, seria moldar seu ambiente para que a atividade que você quer realizar esteja no centro dela como a possibilidade mais interessante disponível. Vale para sua escrita, seu estudo ou seu trabalho.
Assim, quando olhei de novo para a forma como meus dias estavam, decidi mudar algumas coisas. Tirei o Nintendo Switch da sala e guardei bonitinho no case. Além disso, comecei a dormir longe do celular, que fica carregando em outro cômodo. A televisão, claro, continua no seu lugar, mas sem o videogame, o principal gatilho foi removido e tenho me aproximado menos dela.
Assim, cá estou. Meus dedos falam novamente.
Caso você esteja passando por um período assim, talvez valha experimentar uma pequena mudança de paradigma. Ao invés de tentar tornar o seu trabalho criativo mais interessante ou de buscar algum estímulo para criar, pode ser o caso de desligar a TV, silenciar a música e se afastar do celular. Quem sabe, o tédio não te lembre do quanto era divertido pegar uma caneta e um papel para mergulhar no que a sua própria mente consegue fabricar?
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Tem duas semanas que estou afastada dos instagram (desinstalo na segunda e instalo na sexta-feira a noite) e as leituras estão fluindo mais, estou ouvindo mais música e percebendo mais o entorno físico, que antes ficava comprometido por conta do superestímulo virtual.
beijos!
Eu fui afetado por um blecaute neste final de semana! :(
Mais de 30 horas sem energia, de início da noite de sábado até início da madrugada de segunda. Tédio. Bem grande. Tédio!
Projeto de me grudar na Netflix para rever "Sangue Negro" e otras cositas más foi pro espaço.
E quem ganhou com isso?
O Seu Machado. Ele me deteve com Bentinho e Capitu em uma edição de 1982.