“Crie o hábito de fazer coisas pela diversão. Não por ninguém. Sem expectativas. Sem pensar nas consequências. Só pra você mesmo.” — Rick Rubin
Quando ainda somos crianças, é fácil nos envolvermos em atividades que não têm uma finalidade específica. Vamos jogar bola, correr, cantar, pintar, desenhar, jogar videogame, aprender uma arte marcial ou um novo idioma.
É claro que muitas dessas atividades acabam servindo pra desenvolvermos habilidades que podem ser úteis mais pra frente. Algumas são introduzidas justamente na esperança de que nós possamos nos tornar alguma coisa a partir daquilo.
Porém, do ponto de vista da própria criança não existe outra finalidade a não ser a atividade em si. Você brinca pra brincar. Você pinta pra pintar. Você canta pra cantar. Vamos fazendo porque é estimulante, divertido, dá cor à vida.
Mas um pouco mais tarde, dedicar tempo a alguma coisa sem ter um objetivo começa a ser mal visto. Se você comprar uma guitarra é porque obviamente quer fazer uma carreira na música. E, quando isso vem apenas pelo prazer, talvez, sua família até fique preocupada. Afinal… “O que você vai ganhar com isso? É muito difícil. Desiste logo, melhor nem tentar.”
Esse tipo de questionamento acaba aparecendo mais frequentemente, quanto mais vamos assumindo a identidade de pessoas adultas. Vira quase um pecado se dedicar a coisas singelas por mero prazer, ainda mais levando em consideração a urgência das contas chegando todos os meses.
Tudo encurrala você a dedicar ao máximo as suas horas com uma finalidade bem clara: ganhar dinheiro.
A mentira por trás do “trabalhe com o que ama”
Uma olhada rápida pelo Instagram ou Youtube e vemos inúmeros anúncios, vídeos e posts sobre uma coisa: como transformar seu hobby em uma atividade lucrativa.
Sabemos bem que “faça o que você ama” está em todo lugar. É o conselho na ponta da língua quando você manifesta alguma dúvida sobre sua carreira.
Todo mundo já ouviu aquela máxima que se atribui ao Confúcio de que se você trabalhar com o que ama, não vai precisar trabalhar um dia sequer na sua vida.
Mas quando levamos isso como receita de felicidade, acabamos ignorando alguns detalhes sobre como as experiências se dão.
Não existe nenhum fenômeno que permanece prazeroso com a repetição diária. Por mais que você ame aquilo mais do que tudo, ficar exposto ao mesmo estímulo traz um tédio profundo e dolorido.
Claro, podemos fazer um esforço pra tentar diversificar aquela atividade e torná-la um pouco mais tolerável. Mas o senso de prazer e leveza que levam à diversão simplesmente desaparecem quando percebemos que temos muito a perder, quando nossa própria identidade e sustento estão atrelados à continuidade daquela atividade.
Uma das características mais marcantes da forma como o nosso sistema de trabalho é estruturado, é justamente a falta de opção. Por mais que o trabalho seja tomado como um avanço em relação à escravidão, na realidade, não estamos muito longe dela. A esmagadora maioria de nós precisa trabalhar e não pode se dar ao luxo de parar, sob o risco de não ter comida na mesa.
Quando pegamos uma atividade prazerosa e transformamos num trabalho, adicionamos todo esse peso, tiramos a possibilidade de escolha. Fazer algo que você gosta como e quando você quer é uma coisa. Ser obrigado a levantar pra fazer algo quando você não está mais tão a fim é outra totalmente diferente.
O que era uma paixão se transforma numa prisão.
Indo um pouco mais além, ignoramos que a internet de hoje funciona na base da construção de storytelling para gerar engajamento. Então, basicamente qualquer história que a gente escuta é exatamente isso: uma narrativa construída para gerar algum impacto emocional com o objetivo de te fazer comprar algo.
Outro ponto é o de que uma vez que as histórias que engajam seguem um certo padrão modulado pelos algoritmos, a repetição dessas histórias fazem termos uma impressão de que a exceção é a regra.
Claro que existem pessoas que conseguem ser bem sucedidas no que fazem e, por meio da paixão e do interesse, transformam uma certa atividade em um sustento menos sofrido do que o trabalho em um escritório que elas detestam.
Porém, pra cada influenciador de cozinha vegana, existem milhares de outras pessoas que tentaram tornar sua paixão pela cozinha em trabalho nas redes sociais, mas não puderam ou não conseguiram continuar por mil motivos, inclusive por terem ficado desmotivados após perceberem que o prazer virou obrigação.
É importante filtrar o que é fato do que é exagero narrativo.
Alguns anos atrás, houve uma fase na qual a discussão do esgotamento profissional entre Youtubers virou um tema recorrente. Tornou-se insustentável alimentar a plataforma na frequência que os acionistas impunham por meio do algoritmo.
Casey Neistat, dono de um dos maiores canais do Youtube, famoso pelas belas produções e também pelo ritmo alucinante com o qual postava, abriu sobre seu processo. Mas também outros dos maiores nomes da plataforma como AlishaMarie, Kati Morton, Chris Boutté, e PewDiePie relataram dores semelhantes.
Todos eles se viam obrigados pela plataforma e pelo medo de perderem relevância a se manterem fazendo o que antes era apenas um interesse criativo despretensioso.
Mesmo o sucesso em uma atividade prazerosa pode se tornar um motivo de adoecimento quando associado a pressões desmedidas.
Não existe felicidade garantida ainda que a base da sua atividade profissional seja algo que você ama.
A criatividade sem expectativas
Óbvio que não tem nada de errado em ganhar dinheiro com uma atividade que se ama. O problema é quando passamos a achar que algo só vale a pena se gerar algum benefício quantificável.
A pressão de gerar lucro com o que fazemos acaba nos afastando de atividades prazerosas, pois a recompensa interna de repente não é mais suficiente pra nos manter engajados.
Ao invés de sentar e curtir uma tarde de xadrez, precisamos buscar patrocínio pra conseguir vencer o campeonato nacional. Ao invés de passar o dia pintando pra colocar na parede de casa, temos que publicar no Instagram pra garantir likes. Ao invés de tocar uma música no violão pros amigos (ou sozinho), precisamos de milhares de views no TikTok. Menos que isso recebe olhares julgadores. É visto como querer pouco.
Assim, utilizamos nossos hobbies, não apenas como coisas que queremos fazer para nos divertir ou para passar o tempo, mas como ferramentas para nos sentirmos um pouco mais amados e menos sozinhos.
Rick Rubin é um dos maiores produtores musicais do mundo, responsável por ajudar a dar forma aos trabalhos de artistas como Johnny Cash, Black Sabbath, Paul Mccartney, Adele, Lady Gaga e Kanye West.
Em uma entrevista sobre seu trabalho pro podcast do Tim Ferris, Rick Rubin diz:
“Há tantas coisas que podem ficar no caminho do processo artístico. Por exemplo, qualquer tipo de consideração comercial normalmente atrapalha. Se você está pensando em criar canções pra entrar no rádio, as chances são de que você não está usando a sua própria voz… É sobre chegar perto da fonte e não ser distraído por nenhum tipo de nonsense que atrapalha a arte de ser tão boa quanto poderia ser.”
O mais interessante é observar como o Rick Rubin, que é especialista em extrair o melhor de artistas e criativos profissionais, coloca qualquer tipo de preocupação comercial como algo que atrapalha.
É claro que ter um plano, desejar ser o melhor e formar uma carreira são objetivos legítimos.
Mas há também uma magia enorme em se dedicar a algo sem a menor pretensão. Depois da prática e do suor pra aprender e se aperfeiçoar em algo, são nos momentos mais descompromissados que mais nos divertimos. E justamente quando estamos nos divertindo é que damos o nosso melhor.
Existe um prazer muito diferente que acontece quando fazemos algo por fazer, um estado de presença e autenticidade muito raro, quase meditativo. E você não precisa ser um profissional da música com milhões de dólares pra experimentar isso.
O caminho da arte e da criatividade, apesar do que o imperativo social nos faz pensar, não é apenas para quem consegue transformar seu ofício em uma fonte de renda. Você pode, perfeitamente, tirar essa preocupação da equação e utilizar o que quer que você faça como a sua pequena terapia, uma fonte de vitalidade e de alegria em si mesma. Não há absolutamente nada de errado em ter um hobby que consome horas do seu dia sem necessariamente gerar uma fonte de renda. Pelo contrário, pode até ser algo bastante louvável, uma manifestação de amor e de generosidade.
Precisamos começar a questionar a lógica de que tudo que fazemos tem de produzir algo na saída. A nossa própria felicidade e dos outros ao nosso redor é motivo suficiente.
De fato, é difícil lidar com as pressões sociais e familiares. Muitas vezes, as pessoas tentam nos ajudar com a melhor das intenções, como uma forma de nos impedir de sofrer, mas acabam nos afastando daquilo que nos traz potência. Elas acabam esquecendo que o mesmo impulso que canalizamos para as atividades “sem finalidade” são úteis também quando vamos nos dedicar ao trabalho que traz o sustento. Mas isso não deveria ser o nosso motivador. Ao menos, não o único.
A verdade é que ninguém ganha nada bancando o adulto sério cheio de projetos, ocupadíssimo, sempre dedicado ao próximo grande negócio. Às vezes, a gente só quer mesmo brincar por brincar, cantar por cantar ou pintar por pintar.
Por mais que pra alguns seja difícil de entender, esse brilho que adquirimos quando estamos nos divertindo já é a recompensa em si mesma.
Cesta de Compartilhamentos
Criatividade Espontânea (Tenzin Wangyal Rinpoche) - Tenzin Wangyal Rinpoche é um mestre da tradição tibetana Bön que muito me cativa. Considero os ensinamentos dele muito diretos, transmitidos numa linguagem acessível e tratando de problemas bastante cotidianos. Ele é também um artista, poeta e caligrafista e aqui compartilha a visão de sua tradição para a criatividade. É uma enorme inspiração pra tudo que falo por aqui. Se quiser ir direto na fonte, aí está a dica.
Esse vídeo é uma aula de produção musical e sound design - Acho interessante como aqui o Youtuber Yuri Wong mostra um belo exemplo de como utilizar os recursos em mão pra criar algo bem criativo. Ele sampleia trechos do Gandalf no Senhor dos Anéis e cria uma faixa a partir disso, explorando os timbre do OP-1 e mais um outro synth estranho que não faço a menor ideia de onde ele tirou. O OP-1 é um brinquedinho super caro e nem tão prático assim, mas fico surpreso como as pessoas tiram tanta coisa legal dele. Uma prova de que às vezes, o que importa é a intimidade que temos com a ferramenta e não a quantidade de equipamento que temos.
Na Vitrola do Luri: Hiromasa Suzuki
Eu ainda não superei minha fase jazz fusion japonês dos anos 70. A sonoridade simples, acessível mas energética e de execução complicadíssima desses álbuns que venho encontrando se tornou um vício que não passa. Agradeço à feitiçaria algorítmica do Youtube.
Aqui eu trago pra vocês Hiromasa Suzuki com o disco High Flying, que começa em um clima meio noir e vai lentamente introduzindo mais peso, mais energia… e quando você menos espera, está completamente envolvido por um groove absurdo.
Se você, como eu, gosta de longos instrumentais virtuosos e grooves setentistas… esse é pra você.
Diário de Produção
Apesar do meu novo disco, o Espaço Interior, já estar pronto pra lançar dia 13 de setembro, as ações de divulgação ainda estão em processo. Essa semana a produção dos vídeos novamente teve contratempos graças a problemas com os áudios. Isso atrasou as coisas. Por sorte, nada que afete o cronograma.
Um outro ponto… Muitos produtores de conteúdo têm problemas em assumir seus empregos “normais”, mas eu decidi que nessa newsletter vou tentar, ao máximo, ser aberto sobre o status da minha vida e o que vem afetando minha produção, pro bem ou pro mal. E, nesse momento, comecei em um novo emprego como UX Writer. Isso impactou diretamente o tempo e o espaço cognitivo que tenho pra me dedicar ao Puxadinho e aos meus projetos criativos.
O principal é que assumir essas novas responsabilidades gerou acúmulos em relação a entregas que já estavam na minha fila. Ou seja, virou uma baita bagunça de prioridades. Enquanto não consigo reorganizar a vida pra encaixar tudo à minha nova rotina, pode ser que as coisas sigam meio complicadas e eventualmente posso deixar uma ou outra peteca cair nas bandas daqui. Desvantagens de ter que dividir minha atenção.
Mas enquanto isso, seguimos forçando a barra, escrevendo, compondo e cantando o quanto dá. ;)
Passando o chapéu
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Um abraço apertado,
Luri
Sua newsletter já está entre minhas recomendações, mas com certeza vou recomendar esse texto em especial. Eu me vejo muito presa na desmotivação em fazer algo que não gera lucro, o que é completamente sem sentido. Escrever newsletter, pra mim, é essa atividade que dá um prazer enorme e o mais legal é poder compartilhar e ler tanta gente produzindo newsletter e passando por aflições muito parecidas. Na ânsia de produzir algo que "renda algo", muitas vezes a gente não faz nada e fica olhando o celular ou procurando coisa na Netflix. Ou seja, a letargia toma conta e, no fim, também não se ganhou nada, nem mesmo o prazer de se envolver numa atividade bacana.
Obrigada, Luri!
Gosto muito dos seus textos e reflexões. Em meio a mediocridade reinante hoje na internet, como um todo, uma voz assim, que faz pensar e nos motiva, é essencial. Comecei a ler por indicação de uma newsletter e espero em breve contribuir. Gratidão!