Como Hayao Miyazaki pode melhorar a sua escrita
O método Miyazaki para se manter criativo.
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Hayao Miyazaki não é um escritor. Como você provavelmente sabe, ele é um animador. Ou, melhor dizendo, um diretor de animação, membro fundador do Studio Ghibli e mais do que famoso por filmes como Princesa Mononoke, Meu Vizinho Totoro, A Viagem de Chihiro e Nausicaä do Vale do Vento — meu favorito.
Talvez você nunca tenha ouvido falar. Eu mesmo descobri há um tempo atrás e só agora consegui colocar minhas mãos em uma cópia, graças ao advento do livro digital e das lojas online mantidas por empresas bilionárias. O fato é que existe um livro chamado Starting Point (tradução livre: Ponto de Partida) que é uma coleção de ensaios, discursos e entrevistas de autoria do Miyazaki. Tem um monte de textos compilando ideias do diretor, de 1979 a 1996.
Agora, se você conhece um pouco da trajetória do Miyazaki, sabe que essa é uma fase muito interessante da vida dele. Pega da formação do Studio Ghibli até o período um pouco antes de lançar Princesa Mononoke — pra muitos, sua obra prima.
Eu vi em alguns reviews que tem gente um pouco decepcionada, porque o livro não pega o auge da carreira dele. O reconhecimento mundial, os Oscar, a fuga da aposentadoria. Eu sinto de outra forma. Pra mim, não tem nada mais interessante do que ler sobre um grande artista formando sua identidade — especialmente se for em suas próprias palavras.
Aqui no Substack, somos uma comunidade de pessoas apaixonadas por escrita, tanto na forma de escritores quanto de leitores — muitas vezes, revezando entre os dois lados do balcão. Com base nisso, acho que dá para assumir que um dos nossos principais interesses é aprender sobre escrita. Mas o que dá pra aprender nesse livro?
Como falei, Miyazaki não é bem um escritor. Seu trabalho inclui, em muitas etapas, ter contato com a escrita. Afinal, sua função como cineasta demanda escrever roteiros e diálogos. E, obviamente, para fazer com que os personagens soem vivos, reais, você tem de entender alguma coisa. Ainda assim, ele evita o rótulo.
No livro, ele diz que apesar de ter alguns créditos como roteirista, não só não é um escritor, como não se considera muito bom no ofício. Com sua assinatura rabugenta, explica: "Não sei como escrever o melhor roteiro. Se soubesse, eu seria capaz de escrever um".
Em alguns trechos do livro, falando da produção de obras pré-Ghibli, ele comenta que convidou outros colegas para escreverem roteiros. E alguns dos seus trabalhos até tiveram o roteiro escrito após a conclusão, apenas para cumprir os requisitos dos estúdios.
Miyazaki é um senhor prático. Depois de um tempo, sentindo que esse era um esforço que o atrasava, passou a pular o roteiro. Isao Takahata, outro fundador do Studio Ghibli, descreve o processo: "Hayao Miyazaki parou de escrever roteiros há algum tempo. Ele nem se preocupa em primeiro finalizar os storyboards. Desde que tenha uma ideia reveladora para a estrutura do mundo e uma imagem clara dos protagonistas cativantes que irão se confrontar nesse mundo, ele pode mergulhar na construção desse mundo, confiando apenas nas imagens e tramas que tem em mente."
A intuição é um dos pontos mais fortes da maneira como Miyazaki trabalha. Ele não se preocupa em atender a certas regras e conformidades estabelecidas pela indústria da animação. O que importa para ele é outra coisa. "Sempre pensei muito no que deveria criar. E, no mínimo, posso dizer que, não importa o quão desconfortável e envergonhado eu me sinta, também me sinto compelido a criar algo em que realmente acredito."
Pois é, acreditar no que está criando.
Não que seja exatamente algo novo, mas parece que no mundo de hoje, é fácil se perder em ideais de viralização e fama rápidas. As métricas estão aí, dando uma medida clara de quem importa e quem não. Quando você menos espera, está mais preocupado com o que vai “dar certo” do que em criar algo que mova as coisas por dentro.
"Digamos que um projeto foi decidido e você se inspirou por algo. Um certo sentimento, uma pequena faísca de emoção — seja o que for, deve ser algo pelo que você sinta atração e que queira retratar. Não pode ser apenas algo que os outros possam achar divertido; deve ser algo que você mesmo gostaria de ver."
A ideia de criar algo que você mesmo gostaria de ver é um ótimo critério para iniciar um projeto. É uma motivação bem mais forte do que querer um resultado externo palpável — como melhorar sua imagem, aumentar sua base de assinantes ou até ganhar dinheiro. Claro que essas são consequências difíceis de evitar — em algum ponto a praticidade toma a frente. Ainda assim, no momento da criação, o ideal deveria ser se mover por uma fagulha genuína. Interesse, curiosidade. Ou, como ele diz, o desejo de colocar no mundo algo que você gostaria de ver.
Desafios também são ótimos motivadores. No começo da carreira do Miyazaki, retratar corridas se tornou esse foco. "Quando eu estava começando, vários animadores experientes me disseram como era difícil animar pessoas correndo e andando. Enquanto aprendia meu ofício, eu estava cheio de energia e força e, colocando-me no lugar dos personagens, fazia-os correr com toda a intensidade — aqui, desenhe! aqui, corra! — qualquer que fosse a ação — e eu me sentia satisfeito com a qualidade de seus movimentos."
Transformar as dificuldades em joguinhos parece ser um excelente jeito de encarar o ofício com mais leveza. É brincar até conseguir fazer aquilo que algum tempo antes era impossível.
Hoje, Miyazaki é famoso por colocar em seus filmes cenas com personagens correndo. Cada um corre de uma forma específica, que transpareça sua personalidade e o motivo da corrida. Não existe um personagem que corra do mesmo jeito que outro nos filmes dele. O que era uma dificuldade se tornou uma força.
É muito bonito como há uma inquietação no seu olhar, uma curiosidade que nunca se apaga.
Ele explica que "quando uma forma básica é alcançada, ela se torna um formato e perde sua vitalidade. Acho que devemos nos esforçar para comparar o padrão com a realidade repetidamente por meio da observação incessante". É uma postura de se admirar.
Às vezes, enquanto escritores (ou criativos de um modo geral), a capacidade de entender os fenômenos ao redor fica anestesiada. A rotina toma conta e você se vê indo do ponto A ao B de cabeça baixa ou enfiado em uma tela, deslizando vídeos de 15 segundos pra cima e pra baixo. Como resultado, as descrições ficam mortas, o texto é burocrático. Fica cada vez mais difícil acessar aquele espírito energizado de quem descobriu algo interessante para brincar.
A proposta do Miyazaki é nunca achar que entendeu tudo. Observar sempre, não criar fórmulas. Buscar vitalidade.
Numa era onde o nosso olhar é treinado a julgar, descartar e partir pra próxima, o que ele propõe é extremamente contrastante. Tem outros momentos no livro que tangenciam esse tema.
É de se destacar quando ele cita seu processo para entender seus personagens e montar seus mundos. Ele começa com um rascunho, uma pequena fagulha. Não importa se aquilo vai se parecer com a forma final. Na verdade, é até interessante que mude no decorrer do processo. Para ele, o que importa é perceber essa pontinha de interesse e ir puxando, puxando, puxando… até que o contexto inteiro se forme.
"Escondida entre as muitas ilustrações desenhadas na fase conceitual, entre todos os materiais originalmente usados para discutir as ideias caóticas e díspares, encontra-se a verdadeira história que queremos criar. O que é importante […] é ir destrinchando-os gradualmente, para revelar uma história com um tronco ou núcleo sólido."
Uma parte fundamental desse processo é entender o seu papel enquanto animador (ou escritor). Pense um pouco na palavra em si. Animar é isso: dar ânimo, energia, vida. E, ainda que um escritor não necessariamente movimente desenhos em celulóide, ele faz algo bem similar com imagens na mente. Isso é, de uma certa forma, atuar.
Animadores e escritores precisam empatizar profundamente com seus personagens, algo que é bastante familiar para qualquer ator. É necessário considerar motivações e sentimentos, se existe medo, orgulho, vergonha, determinação.
Se feito com honestidade e dedicação, o resultado só pode ser um, como ele diz: "as emoções deles se tornarão as suas. E, como é frequentemente dito, você se tornará tanto um animador quanto um ator."
Miyazaki dá uma abordagem bastante interessante à empatia com seus personagens. Um trecho do livro é de cair o queixo, quando ele conta como faria um filme sobre uma abelha.
Imagine a forma como uma abelha enxerga o tempo. A abelha vive centenas de vezes menos tempo que nós. Então, podemos assumir que, para uma abelha, um segundo pareça centenas de vezes mais longo. A partir dessa tese, ele continua falando sobre como seria a aparência de uma gota de chuva para as abelhas.
"Se um dos nossos segundos é como cem segundos para a abelha, então, para a abelha, uma gota de chuva também pareceria levar cem segundos para cair a mesma distância que levaria apenas um segundo para nós. Certo? Então, em vez de cair rapidamente, a chuva pareceria cair muito, muito lentamente, certo? E quando chove, nós nos molhamos, certo? Mas eu aposto que a abelha não se molha. A chuva pode parecer cair rapidamente para nós, mas pareceria lenta para a abelha, então acho que a abelha provavelmente consegue evitar as gotas. As abelhas batem as asas a uma velocidade incrível, mas para a abelha, suas asas provavelmente parecem estar batendo aproximadamente na velocidade que veríamos uma pessoa andando balançando as mãos. E se for esse o caso, as abelhas provavelmente também veem as gotas de chuva individualmente de forma muito clara."
É um processo de empatia radical. Usar a imaginação pra considerar todas as implicações daquele ponto de vista, se colocar na pele do ser em questão. Note isso: ele conta até mesmo o fato de que não se trata de um ser humano, mas da observação da realidade sob a ótica de uma outra forma de vida, que vai entender o tempo e o espaço de uma maneira totalmente diferente. Com curiosidade, ele vai puxando o fio até descrever algo fantástico, que realmente faz você pensar que aquilo seria possível.
Sim, talvez não faça nenhum sentido científico — eu realmente não sei. Mas é o suficiente para fazer você se questionar e é esse o ponto. No minuto em que você questiona, você compra a teoria e já está dentro daquele mundo. A partir disso, qualquer coisa é possível. Você mergulhou na realidade proposta por ele. Não sei você, mas ser capaz de fazer isso é um dos meus sonhos como escritor.
Ainda que Miyazaki realmente não seja e não se considere um escritor — e não seja lá muito fã do ofício — seu método de trabalho tem ideias que podem ser bastante úteis para quem escreve. Eu li o Starting Point e fui observando vários paralelos em relação ao meu trabalho como escritor e criativo. Tanto que fiquei super empolgado com a ideia de compilar alguns desses trechos e compartilhar aqui.
Como já deve ter dado pra perceber, recomendo bastante a leitura e adoraria conversar mais sobre. E você, já leu esse livro? O que achou das ideias do Miyazaki? Gosta dos filmes dele? Comenta aqui e vamo papear. :)
Essa parte é sobre você 🫵
Eu não sei o que aconteceu, mas chegou um montão de gente nova da noite pro dia. Alguém aí poderia me dizer de onde veio, só pra eu ter uma noção?
Caso tenha caído de pára-quedas, saiba que aqui servimos ensaios e crônicas sobre o cotidiano, as relações, arte e criatividade. A ideia é que o Puxadinho seja um espaço onde eu possa contar o que ando pensando, mas que também encontre pessoas que compartilhem das mesmas esquisitices.
De qualquer forma, queria dar as boas vindas a você. Pode puxar uma cadeira, tem petiscos em cima da mesa e o café está na garrafa térmica. Sinta-se à vontade.
Um abraço e até a próxima!
miyazaki é um gênio! os filmes dele são de uma sensibilidade incrivelmente rara. agora, vendo como ele é um observador atento da vida e do mundo, entendi de onde vem essa sensibilidade.
Adorei o texto. Sou muito fã do Miyazaki e da forma como ele vê o mundo. Pra quem quiser ler também sobre o auge da carreira, tem uma continuação, o livro Turning Point, que fala sobre os anos seguintes, até 2008.