Não perca o dia de hoje
Não temos consciência do tempo e de todas as formas imprevisíveis que ele pode se arranjar.
Ainda tenho tempo para cozinhar rápido, comer, assistir um filme e dormir. Não posso ficar procurando uma receita para fazer a janta perfeita ou vai ficar tarde e não vai dar pra relaxar um pouco. Também não posso seguir o impulso de entrar no Instagram, bombardear meus amigos de Reels e responder todas as mensagens. Afinal, posso acabar agitado e demorar para dormir.
Caso isso aconteça, vai ser um problema, porque se tem algo que me deixa ainda mais burro e irritado é a falta de sono. O pior é que o chamado do entretenimento infinito desencadeia um efeito dominó de atrasos que só me deixa ainda mais ansioso. Eu juro que me esforço pra fazer tudo no tempo certo, mas nem sou a pessoa mais pontual do mundo.
Acordo e olho o relógio. Conto as horas que dormi e, como sempre, não foi o bastante. Ainda não criaram uma inteligência artificial que dê broncas programadas pela manhã, mas ao menos sei que posso contar com meu autojulgamento pra isso. Essa parte da minha psiquê nunca falha.
Ao menos levantei sem maiores solavancos. Coloquei roupa, tomei meu café. Ainda tenho uma hora para fazer meu treino na academia, antes de começar meu dia de trabalho.
Aqui vale uma distinção: normalmente, uso a palavra “trabalho” quando me refiro ao emprego formal, o que paga a maioria dos meus boletos. Eu costumava me orgulhar de ter um emprego tranquilo, no conforto do home office, mas as maquinações do capital eventualmente dão um jeito de colocar as engrenagens para girar mais rápido e, comigo, não está sendo diferente.
Ainda preciso fazer o almoço, porque dessa vez, tenho uma reunião logo em seguida. Não posso atrasar — apesar de já ter começado o dia correndo atrás do relógio.
No meio do meu Masterchef pessoal edição carne moída com ervilha, lembrei que eu tinha que agendar a aula de hoje. Não comentei, mas tenho uma falha de desenvolvimento como adulto: nunca tirei CNH. A consequência é que, agora, depois de velho, preciso tirar tempo, energia e dinheiro pra assistir 40 horas das aulas mais sofridas que eu já vi na vida. Você, jovem, não faça isso.
Não sei se todo mundo é assim, mas se eu pudesse, emitiria gritos de dor, como se estivessem me cortando com papel, cada vez que sou obrigado a ouvir as aulas teóricas de trânsito durante uma hora. Esse é um tempo que, infelizmente, nunca vão me devolver — e pensar que eu paguei por isso. Ainda assim, preciso pensar positivo: a impermanência age para todas as coisas. Um dia a tortura acaba e eu vou poder pegar um carro pra fugir da sociedade. Mas, por enquanto, não tem nada que eu possa fazer. É assistir e ponto.
Isso significa que vou ter menos tempo para fazer aquilo que eu mais gosto no meu dia: escrever. Talvez, não à toa, ando evitando a tela em branco. Não tem muito jeito, a criatividade pede um certo nível de espaço para as ideias respirarem. Não deve ser à toa que as pessoas mais ocupadas vivem repetindo que não são criativas. Como ser criativo com o cérebro fumaçando?
Chega a ser triste. Ultimamente, sentar em frente ao computador tem gosto de obrigação, algo muito diferente do prazer de antes. Quando começo a relaxar, o que vem não são palavras, mas sim um peso que me empurra para a cama ou para o sofá. O corpo pede pra se largar.
O que mais me aflige não é nem ficar ocioso, mas sim, tirar o celular do bolso. Eu explico: o tempo, como tudo, pode ser classificado. Sinto que se algum cientista estudar a nossa percepção do tempo, com certeza, vai criar um nome especial para o tempo desperdiçado. Sabe, aquele tempo que passa sem ser sentido? É como quando deixo meus dedos deslizarem pra cima e pra baixo, em uma sucessão abstrata, infinita, de informação e sons que sou incapaz de lembrar se você me interromper e perguntar.
A pele ficou um tico mais flácida, o cabelo um teco mais branco. Você queimou um pouquinho mais da vela da vida e nem sequer se lembra como. Esse é um tempo que não foi vivido, apenas escorreu sem registro. É por isso que esse tempo nas redes sociais é um tempo que eu nem pensaria duas vezes antes de colar a etiqueta do desperdício. Arrasta pra cima, desliza pra esquerda.
Na mitologia grega tem o filho mais novo de Zeus, Kairós, conhecido como o deus do tempo oportuno. Ele representa aquele aspecto de quando tudo parece se encaixar, acontecendo no tempo certo, caindo no ritmo.
Essa é uma percepção que dificilmente acontece na urgência. Quanto mais nos pressionam a andar rápido, menos somos capazes de sentir o ritmo natural, de observar e aguardar os encaixes acontecerem.
Sei que é complexo, levando em consideração como o tempo acelera à medida que a idade avança. Mas, teimoso que sou, não consigo deixar de pensar sobre o que faz esse tempo comprimir. Será que existe alguma maneira de continuar vendo os dias passarem no eterno e contínuo presente da juventude, mesmo enquanto o corpo faz o que todo corpo faz quando envelhece?
Também tento encontrar o tempo do pertencer. Não só entrar no ritmo, mas fazer parte dos lugares onde estou. Para quem passou a vida se sentindo um alienígena, considero esse um desafio, um feito. É uma camada a mais que, talvez, seja sutil, mas faz sentido pra mim. Depois de tantos anos mudando e me mudando, quero encontrar dentro de mim um espaço que posso chamar de lar.
Li há algum tempo uma citação de Jorge Luís Borges que, em meio a toda a correria me levou para longe.
“O tempo é a substância da qual sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destrói, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo.”
Tudo acontecendo ao mesmo tempo traz uma urgência. É tanta opção, tanto canto de sereia, que fica difícil decidir qual voz seguir. Acho que hoje eu até gostaria de estar no meio de um oceano vazio, ouvir uma bela voz e saber exatamente que é aquilo que eu quero perseguir. Raramente sou esse poço de foco e determinação. É mais fácil estar disperso, confuso, perdido, carente.
Seria um absurdo dizer que a única coisa que me faz perder tempo é a minha interação excessiva com telas. Talvez, o pior seja a crença cega de que tenho muitos dias além de hoje. E, por mais contraditório que possa parecer, um dia produtivo pode ser o dia mais desperdiçado de todos.
Outro dia vi uma árvore cortada em uma calçada pela qual eu sempre passava. Ali, antes, ficava uma árvore gigantesca que se estendia de um lado ao outro da rua e deixava folhas pela rua, que os carros varriam para as laterais da via toda manhã. O tronco ainda estava avermelhado, úmido, mas o que realmente me chamou atenção eram as linhas circulares. No centro, um círculo menor, depois outro um pouco maior, outro maior, num desenho que lembrava um pouco uma impressão digital. Mais tarde, descobri que cada linha daquelas representava um ano na vida daquela árvore. Não cheguei a contar quantas eram, mas eram muitas.
Achei curioso como cada linha daquelas tinha algumas particularidades, como se fossem cicatrizes que se formavam. Quase como se ali, ficasse registrada a história daquela árvore ao longo das muitas chuvas que devem ter caído em cima dela.
Eu não entendo nada de árvores, mas fiquei refletindo na minha pressa para resolver mais um perrengue sobre como, um dia, eu também vou ser cortado da terra e vão cobrir minha existência com cimento. Talvez alguém consiga ver meus restos e tirar algum proveito da vida que eu vivi, não sei. Espero que sim.
Finalmente, acabou a última reunião. Posso desligar o computador e sair de perto da minha mesa.
Agora, vem a reprise. Ainda tenho tempo para cozinhar rápido, comer, assistir um filme e dormir. Não posso ficar procurando uma receita para fazer a janta perfeita ou vai ficar tarde e não vai dar pra relaxar um pouco. Também não posso seguir o impulso de entrar no Instagram, bombardear meus amigos de Reels e responder todas as mensagens. Afinal, posso acabar agitado e demorar para dormir. A luta é a mesma, mas eu sei o que vou fazer.
O tempo não é um recurso infinito. É tão difícil sentir a verdade dessa afirmação. Não temos consciência do tempo e de todas as formas imprevisíveis que ele pode se arranjar. Não compreendemos a forma como ele pode ser percebido de acordo com cada subjetividade. Não sabemos como podemos viver bem o tempo e tatuar suas marcas em nós, como as linhas do tronco de uma árvore.
Talvez, o que sobre, seja mesmo a rendição, a entrega, e a esperança de que depois de acordar, treinar, trabalhar, beijar e dormir, esse não seja um dia perdido.
Água funda, de Ruth Guimarães
Um dos projetos de nerd cabeçudo que tenho com meus amigos é um clube do livro. Como depois dos 30 fica difícil arrumar muito tempo pra ler, nos encontramos de dois em dois meses para discutir um livro curado por um de nós. Dessa vez, foi Água Funda, da Ruth Guimarães. Confesso que é o tipo de coisa que eu dificilmente pegaria sozinho, então, foi uma grata surpresa. A história é contada quase como uma grande fofoca, uma sucessão de eventos com tom de conversa de cozinha, narrando os eventos da fazenda Olhos d'Água ao longo das décadas. Outra dessas coincidências que me levou a refletir sobre o tempo. Não vou me estender muito pra não estragar a história pra ninguém, mas adianto que chorei três vezes ao longo da leitura. Estou encantado e traumatizado, do jeito que eu gosto.
Volta o cão arrependido 🐶
Agora o momento sincerão. Eu precisava dar um tempo. Comentei nas últimas edições do Puxadinho que tentaria levar as coisas de forma mais leve, por causa do caos que a minha rotina tinha se tornado, mas no final, precisava mesmo era parar tudo pra recarregar. Eu sei que alguns planos estavam em andamento, mas não consegui prosseguir. Então, assim foi, peguei o resto de mês de setembro que ainda tinha e sumi.
Aproveitei o intervalo pra parar inclusive meu emprego formal, tirei umas férias curtas nesse tempo para deixar a mente respirar.
A boa notícia é que agora me sinto melhor. Não diria totalmente renovado, mas bem o suficiente para me dedicar novamente à rotina de cuidados com o corpo e com a mente, incluindo as minhas atividades criativas — vulgo: Puxadinho.
Esse trechinho é para pedir desculpas pelo sumiço e agradecer a todos pela paciência. Voltamos à programação normal. <3
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Então, você já sabe o caminho:
Precisava muito ter lido esse texto hoje. Conforme você foi contando do seu dia, pude ir repassando o meu, revivendo mentalmente todos os espaços preenchidos pelos afazeres e me peguei lamentando não ter tido o tempo/ espaço pra esvaziar a mente. Agora estou pensando muito no filme Dias Perfeitos e na calma, no respiro e na brevidade do dia a dia. Sinto que seu texto me lembrou de me reconectar comigo mesma. Obrigada :)
Gostei, Luri. Estamos todos meio doentes de FOMO. Acho que no fundo, a gente acaba sempre chegando no mesmo lugar. No presente, no agora, no desfrutar desse tempo, em vez de lamentar o terrível fato de que ele passa.