Quando os olhos se abrem, a primeira visão é dos raios de sol empurrando pelos lados da cortina blecaute, estendendo os braços pra dentro do quarto.
Ao pegar a escova de dentes, encaro meus olhos inchados. Tento não notar os fios grisalhos se acumulando nas laterais da cabeça.
Segundo minha certidão de nascimento, é meu aniversário. Dia 18 de maio. Há mais de três décadas habito esse mundo e, ano após ano, vou me aproximando de começar a dizer “há mais de quatro décadas”.
O rosto é diferente, mas gosto do que vejo, apesar das rugas e das marcas na pele já mais ressecada do que costumava ser.
Lembro dos anos de adolescência. Os amigos, os corações partidos, os momentos de alegria, mas principalmente, da sensação de potencial. Olhar para o futuro e sentir que o vir a ser é um pode ser.
Nessa fase, somos como escritores cuja grande história está para sair pelos dedos. Espontaneidade, alegria. Muito em jogo e, ao mesmo tempo, quase nada. Saltar de cabeça é, quase sempre, a regra. A régua, um simples gostar ou não gostar. Gosto, logo pego. Não gosto, logo fujo.
A maioria das pessoas escolhe carreira, parceiros e amigos dessa forma. É curioso observar que decidimos nossos caminhos de um jeito não muito diferente de quem escolhe um filme, como espectadores comprando um ingresso sem saber para onde a história vai levar.
Isso não impede ninguém de escrever os personagens que vão encenar. Um pouco de pose-de-quem-sabe-o-que-está-fazendo, uma dose de esconder-os-próprios-defeitos, um temperinho de ninguém-me-passa-pra-trás. Bota um pó de olha-como-eu-sou-legal e vambora, bola pra frente.
O caminho é feito topada após topada. Com o tempo, os roxos e arranhões se acumulam e vão ensinando onde é mais ou menos seguro pisar. Tem gente que se esbarra tanto que, no final das contas, cria um afeto pelos cantos. Quando passa por ali, faz questão de tropeçar nos mesmos lugares. Outros, vão ficando com medo e jamais variam o caminho. “Deu certo por aqui, é por aqui que eu vou”. Evitam explorar, pra não ter o dedinho machucado de novo.
A ironia é que, mesmo decorando cada milímetro do caminho, volta e meia aparecem uns monstros, como em encontros aleatórios de jogo de RPG. Alguns pequenos, que morrem fácil. Outros muito maiores, que forçam a retirada. Não é raro ter que aprisionar alguns, colocar no porão e jogar a chave fora. O fato é que não dá pra se proteger muito, por mais que se tente.
E ainda que você consiga criar uma trilha perfeita, longe de toda ameaça, uma certa dor está lá. O “pode ser” fica cada vez mais estreito, até que parece não poder mais.
Sim, sou culpado. Eu mesmo, fui me delimitando por meio de personagens pré-escritos, incorporando dia após dia as suas vozes. Filho, irmão, amigo, namorado, marido, cantor, escritor, designer... Cada um com um conjunto de regrinhas que diziam com o que eu deveria me alegrar ou me entristecer, como me comportar, do que gostar ou não gostar.
Parece uma ratoeira óbvia, mas não é à toa que muita gente segue scripts. Saber exatamente o que representa o certo e o errado dá conforto, torna a vida mais fácil. De repente, você sabe onde errou e como pode fazer pra acertar.
Não é à toa que religiões e seitas cooptam muita gente. Elas trazem um senso de estrutura que simplifica muita coisa, mas também traz seus problemas.
O queijo, ali, é a promessa de receber elogios, aceitação, amor, dinheiro. Vamos sedentos, mesmo sabendo que está fácil demais e raramente entendemos bem o porquê dessa inquietação que nunca passa. Tem sempre uma falta lá no fundinho.
Coloco a escova de dentes no suporte e encho as mãos de água para enxaguar a boca. Lembro do Ethan Hawke. Você, que gosta de filmes com personagens cabeçudinhos, provavelmente conhece ele de Antes do Amanhecer, Sociedade dos Poetas Mortos ou Caindo na Real.
No começo, eu não prestava muita atenção aos filmes dele, confesso. Mas de repente, os algoritmos começaram a me mostrar entrevistas com esse jovem senhor falando. E, ao ouvir, fui percebendo que ele tinha um ponto de vista sobre a produção de arte que realmente me cativava.
Tem uma conversa no canal Film At Lincoln Center na qual ele comenta sobre Caninos Brancos, um dos primeiros filmes da carreira dele, onde contracenava com um híbrido de cachorro e lobo.
Ele conta que atuar com um animal semi-selvagem, como era de se esperar, tinha suas particularidades. Quando você está atuando, é natural que esteja pensando em como se posicionar para a câmera, se está indo bem ou mal, etc — não que eu saiba, mas é o que ele diz.
Com o lobo, a pior coisa que podia ser feita era entrar nesse “estado de atuação”. Se ele chamasse o bicho e estivesse imaginando sua imagem na câmera, era como se o lobo percebesse e pensasse “o que você tá fazendo?”. Todas as vezes que ele entrava nesse estado, o lobo ficava confuso e a cena não funcionava.
Então, ele precisou começar a pensar de outro ponto de vista. Por que, afinal, ele queria que o bicho fosse até ele? Por que ele queria fazer carinho no lobo? Ainda que fosse uma atitude deliberada, a postura correta demandava uma motivação genuína porque o animal conseguia sentir sua intenção.
De alguma maneira, ele tinha que encontrar um certo estado de espírito que, mesmo que fosse planejado, calculado, fosse também autêntico. Era necessário sentir o que ele queria sentir e querer o que realmente queria. Qualquer pensamento extra, qualquer julgamento, qualquer dúvida e lá ia embora o lobo, todo desconfiado.
Não sou ator em Hollywood, nem bonito, nem inteligente e nem rico como o Ethan Hawke, mas consigo ver similaridades entre interagir com um lobo no set e tentar conectar.
Aqui, não me refiro a conectar apenas com pessoas, tentar construir relacionamentos. Claro que isso também, mas a questão é que, enquanto não encontro o ponto da autenticidade, parece que sempre tem algo fugindo de mim — a mudança de carreira, os amigos íntimos, o relacionamento amoroso, eu mesmo. Eu chego meio “vem cá, Totó” só pra ver essa coisa escapar.
De tanto repetir esse padrão com os lobos da minha vida, comecei a desconfiar de mim, das minhas intenções, dos meus sonhos, do que conto por aí. As falhas de roteiro dos personagens pré-definidos começaram a ficar evidentes.
Ainda bem que uma das vantagens em ser um personagem da vida real é que a habilidade de escrever minhas próprias falas e ações está disponível. Claro que tem o grande desafio de sair da própria caixinha, da classe de personagem, do arquétipo. E, depois, tem o desafio adicional de não acreditar demais no que foi escrito — mesmo sendo obra minha — sob o risco de apenas cair em outra caixinha.
Posso sair dos hábitos e parar de percorrer os mesmos caminhos. Posso explorar novas formas de fazer. Arriscar tropeçar em novos cantos, por mais que doa.
Outro desafio é começar a encontrar atrás do personagem aquilo que tenho de mais profundo sobre quem eu sou e quem posso ser. Talvez, existam em mim alguns monstros cheios de dentes, mas pode ser que eu encontre também uns itens mágicos, artefatos raros e bonitos que possam me ajudar.
Ao lidar com os monstros no calabouço, posso virar a lógica completamente de cabeça pra baixo. Ao invés de combater, posso alimentar um por um com o que eles realmente precisam. Depois, quando eles estiverem satisfeitos, posso começar a soltar todo mundo, até esvaziar as celas, uma a uma. Quem sabe, posso até transformar os monstros em aliados, como Pokémons.
Isso é importante. Uma vez que eles se transformem, acho que é possível permanecer ao lado deles sem medo, sem negar, sem acorrentar e esconder ninguém. Posso andar nas ruas exibindo meus amigos. Posso mostrar a verdade tranquilo, afinal, todo mundo tem alguns desses escondidos em alguma masmorra.
E mesmo que alguém ainda olhe com desconfiança, julgando meus Pokémons, posso rebater com minha mais sincera honestidade e aspirar que um dia essa pessoa também possa saber o quanto é mais leve andar com seus monstros bem alimentados por aí.
Enquanto vou me vestindo, pego meus itens mágicos. Um notebook, um caderno, duas canetas, um dos livros que deixei na cabeceira antes de dormir. É com isso que vou contar a história do personagem que pretendo reescrever.
O velho que um dia quero ser.
Dois anos de Puxadinho do Luri! 🎉
Pois é, o tempo voa. Parece que foi ontem que comecei a escrever e publicar no Substack, depois que uma amiga me disse que estava usando a plataforma e adorando. Mas cá estou, dois anos e 70 edições depois.
O último foi um ano daqueles, né? No final, não tive muito fôlego para criar grandes projetos. Com isso, o que tenho pra mostrar é apenas um punhado de textos que estão aqui, no arquivo do Puxadinho.
Nesse período vim, justamente, realinhando minhas prioridades e deixando de lado alguns desejos que estavam pesando. O resultado é que, agora, venho assumindo mais o lado escritor do que o lado músico. Sei que é menos instagramável, mas é mais leve pra mim.
Continuo com o sonho de lançar um livro e, felizmente, posso dizer que iniciei o projeto. Existe um documento na nuvem com vários textos. Considero como um progresso. :)
Fico feliz demais em poder comemorar mais essa volta ao redor do sol com você. Agradeço, de coração, pelos apoios que venho recebendo, seja na forma de comentários, e-mails ou pix. É tudo muito bem vindo e ajuda demais como incentivo.
Agora, é só continuar continuando. Um abraço e que o próximo ciclo seja ótimo pra todos nós! :)
Agora tenho um Kindle! O que você me indica pra ler?
Eu adoro meus objetos. Instrumentos, sintetizadores analógicos, vinis, quadros, cadernos, lápis, canetas, cartuchos de videogame… gosto quando uma obra, ferramenta ou ideia está representada por meio de uma coisa que ocupa um lugar no espaço, no mundo.
Juro, sinto algo muito diferente ao folhear um livro antigo, empoeirado — e não é só rinite. O livro físico tem um lugar especial na minha vida, na minha estante. Muitos viraram doações compulsórias, é verdade, apesar de terem saído de casa como empréstimos. Mas não ligo, acho legal que meus livros tenham encontrado outros lares, outras estantes.
O Seinfeld faz chacota, mas é verdade: eu me orgulho dos livros que li e tenho um lugar na sala onde eles são exibidos como troféus. Pode me julgar com essa sua cara arrogante, Seinfeld, você estava certo.
Ainda assim, depois de anos me orgulhando de ler apenas livros físicos, finalmente me rendi aos avanços da tecnologia impulsionados por corporações bilionárias. Ou seja, ganhei um Kindle e estou amando. 😅
O primeiro livro que li foi o da
, “Bobagens imperdíveis para ler em uma manhã de sábado”, que não consegui ler numa manhã de sábado, mas em restos de algumas noites depois do trabalho. Uma delícia!Então, gostaria de pedir a sua ajuda com indicações de livros para rechear meu Kindle. Pode usar os comentários e ajudar um recém iniciado no universo da leitura digital. Bonus points se for um livro sem versão física e de autoria independente. :)
Contribua com o Puxadinho do Luri
Eu publico dois textos por mês no plano gratuito, mas contribuindo com o Puxadinho com R$10 por mês, você recebe mais dois textos exclusivos (tornando a periodicidade semanal) e se torna prioridade nas próximas empreitadas que pretendo começar a realizar com o seu apoio. :)
Então, para me ver feliz e contribuir com a existência e crescimento do Puxadinho, você já sabe o caminho:
Que delícia de texto!
Dica de leitura no Kindle: "Um garimpeiro, um padre, um médium, um detonador, um guia turístico e eu", de Paula Gomes.
Eu não sei o que te indicar para ler no kindle, pq acho que dá pra você ler o que quiser. Mas um truque que eu uso muito é quando estou lendo um calhamaço, ter ele no kindle também, assim quando vou sair posso continuar a leitura sem ter que carregar um trambolho 😁